Defesa essencial

19/12/2019 16:33

Pesquisador da UFSC desenvolve embalagem com óleos essenciais que protege maçãs do bolor azul

Caetano Machado

O alto potencial antimicrobiano de uma embalagem bioativa com óleos essenciais, capaz de atrasar o crescimento e o desenvolvimento do fungo Penicillium expansum nos frutos de maçã, foi um dos resultados da pesquisa de doutorado de Argus Cezar da Rocha Neto no Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia e Biociências da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O trabalho elaborou um tipo de defesa para os frutos com o uso dos óleos essenciais de anis-estrelado e palmarosa, mantendo as características físico-químicas das maçãs.

Argus, atualmente professor no Centro Universitário Adventista de São Paulo, passou 11 anos na UFSC – além do doutorado, fez mestrado em Biotecnologia e Biociências e graduação em Agronomia. O TCC e a dissertação dele já tratavam do controle do bolor azul em frutos de maçã, algo que não era exatamente do seu interesse quando iniciou o curso. Entre as disciplinas que atraíram o pesquisador ao longo da graduação estava a Fitopatologia (que aborda os conceitos, importância e diagnóstico de doenças de plantas). Sem vaga de bolsista de iniciação científica à época, Argus passou a integrar um grupo de estudo sobre o tema, auxiliando um mestrando em seu projeto. Ele esperou um ano e, quando a vaga surgiu, “era justamente com esse patossistema (P. expansum em frutos de maçã). À medida que fui trabalhando, me apaixonei pelo assunto e resolvi seguir no mestrado e doutorado para me aprofundar nessa linha”, conta.

O fungo P. expansum é necrotrófico, ou seja, para que ele se desenvolva os tecidos infectados acabam morrendo, explica Argus. “O fungo pode penetrar por ferimentos causados durante o processo de colheita e, até hoje, é considerado como um dos principais fungos patogênicos em pós-colheita da maçã, podendo se manifestar durante todo o período de armazenamento. Se não tomar cuidado, um fruto doente pode infectar até 15 outros”, diz. A primeira manifestação do fungo surge numa mancha pequena, de coloração marrom-clara a castanho. À medida que o tempo passa, o fungo cresce, assim como a lesão. “No final, a maçã está completamente tomada: uma massa de fungo (micélio e esporos) envolve o fruto, com uma coloração azulada. Daí o nome popular ‘bolor azul’”, aponta o pesquisador. Ele ressalta que outro problema vinculado a este patógeno pode afetar diretamente os seres humanos: a produção de uma toxina chamada patulina.

Extraídos de plantas, os óleos essenciais são uma solução para inibir o desenvolvimento de fungos em decorrência da evaporação e para evitar o uso de agrotóxicos na conservação dos frutos. “Não é necessário que o óleo entre em contato direto com o fungo para matá-lo. Nesse sentido, eles se tornaram uma estratégia interessante de combate, já que pequenas doses seriam capazes de ocupar um grande volume”, relata Argus. “De forma mais específica, o que se observou é que os óleos, ao que os resultados indicaram, danificavam a membrana plasmática dos esporos. Com danos na membrana plasmática, o conteúdo intracelular extravasa para o meio, impedindo que o fungo se desenvolva”, completa.

Os óleos essenciais são classificados como GRAS – Generally Recognized as Safe (Genericamente reconhecidos como seguros) pelo Food and Drug Administration (órgão regulador dos Estados Unidos para classificação de produtos). “Seguros para o quê? Para o consumo humano e utilização ambiental. Além disso, os óleos essenciais são voláteis, permitindo que os utilizemos de diferentes formas e modos. Já outros produtos e métodos tradicionais muitas vezes não”, afirma Argus.

O trabalho contou com o teste inicial de 15 óleos essenciais diferentes, tanto em placas de vidro quanto em plástico (uma vez que há interação entre os materiais e os óleos). Os mais promissores para conter esse fungo foram anis-estrelado (Illicium verum), árvore-chá, ou tea tree (Melaleuca alternifolia), e palmarosa (Cymbopogon martinii). Na tese de Argus, a ideia foi aprisionar os óleos essenciais em um tipo de molécula de carboidrato (ß-ciclodextrinas), que possibilita a liberação gradual dos compostos presentes, depositada em um fundo duplo, uma espécie de compartimento da embalagem. “A partir desse fundo duplo, os óleos sairiam das ß-ciclodextrinas por volatilização e controlariam o fungo, ampliando o tempo de prateleira dos frutos”.

A investigação de Argus buscou uma “embalagem inteligente” para solucionar o problema. Ela é chamada de bioativa porque “contém substâncias que, em uma determinada condição, serão ativadas e trarão algum tipo de benefício. Nesse caso, impedir o desenvolvimento de P. expansum e também prolongar o tempo de prateleira dos frutos”.

Argus realizou experimentos de permeação para saber qual o tipo de plástico não permitiria que os óleos essenciais saíssem deles (e que não interagissem com o plástico). “Precisava de um plástico que permitisse a troca gasosa do fruto com o ambiente. Realizei uma série de testes e cheguei a um tipo de plástico mais adequado.
A partir disso, junto à minha orientadora da Michigan State University, definimos um protótipo baseado no mercado americano”. Os resultados do trabalho mostraram, pela primeira vez, a eficiência dos óleos essenciais de árvore-chá, anis-estrelado e palmarosa em controlar o bolor azul, mantendo as características físico-químicas dos frutos. Para a embalagem bioativa, foram utilizados os óleos de palmarosa e anis-estrelado.

O estudo de Argus só foi possível por conta de bolsa da Capes e de uma instituição particular, o UNASP-EC, para o período sanduíche na Michigan State University (local em que elaborou o encapsulamento e desenvolvimento da embalagem bioativa). “Minha tese demandou muito tempo de bancada. Foram várias horas desenvolvendo o que fiz. Se trabalhasse, certamente não teria conseguido tantos resultados”. Do período de 11 anos na UFSC, Argus guarda boas lembranças: “Fiz vários amigos, conheci bons profissionais, aprendi muita coisa, tanto prática quanto teórica. Mesmo sem bolsa da Capes (para viajar ao exterior), tive a oportunidade de ir para o doutorado-sanduíche com o suporte do meu orientador e coorientador. Sou muito grato pela formação e pelas amizades que construí ao longo dessa jornada, principalmente ao meu orientador de longa data, Robson Marcelo Di Piero, que hoje considero um grande amigo”, conclui Argus.

Menção Honrosa no Prêmio Capes de Tese 2019

Além da produção científica, a tese de Argus, “Aplicação de óleos essenciais em embalagens bioativas para o controle do bolor azul (Penicillium expansum) em frutos de maçã”, orientada pelo professor Robson Marcelo Di Piero e coorientada pelo professor Marcelo Maraschin, conquistou a Menção Honrosa no Prêmio Capes de Tese 2019 na área de Biotecnologia. O estudo contou também com um período sanduíche na Michigan State University, nos Estados Unidos, sob a orientação da professora Eva Almenar.

A trajetória de um cientista transformada por camundongos e coelhos

19/12/2019 15:57
Daniela Caniçali

Carlos Roberto Zanetti, professor titular do departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da Universidade Federal de Santa Catarina (MIP/CCB/UFSC), escolheu a Biologia por gostar de animais e plantas. “Adorava estar na natureza. Um avô, que foi meu grande incentivador, sabia o nome de tudo quanto é árvore, passarinho… Eu ficava fascinado com aquilo”, recorda. Hoje, aos 58 anos, e há 22 como docente, a admiração e respeito pelos bichos permanece. Zanetti tornou-se referência na difusão de métodos alternativos ao uso de animais na ciência. Sua contribuição ao campo da Bioética é fruto de um caminho que inclui, paradoxalmente, amplo uso de animais em atividades acadêmicas.

Natural de Jundiaí (SP), Zanetti ingressou no curso de Ciências Biológicas em 1980. Ao longo de toda a graduação – e posteriormente no mestrado e doutorado – percorreu diariamente os 60 km que separam sua cidade natal da Escola Paulista de Medicina, na Universidade Federal de São Paulo. “Eu vinha do interior e fiquei fascinado pela escola e pelos professores, todos doutores. Era um outro mundo, um novo universo para mim. Tínhamos uma abundância de aulas práticas, muitas com uso de animais. Aquilo sempre me incomodava, mas eu não tinha a menor capacidade de questionar”, relembra.

A maioria dos docentes eram recém-chegados de outros países, como França e Inglaterra. Isso o impressionava, ao mesmo tempo em que o intimidava. “Nunca imaginei que teria aulas com professores tão qualificados. Então, apesar de me incomodar com o uso de animais, não tinha coragem de dizer nada. Só depois percebi que havia passado por um processo de transmissão de conteúdos ocultos.” A autoridade de seus professores legitimou, gradualmente, o que, a princípio, era estranho para ele: injetar drogas, dar medicamentos e fazer cirurgias em seres saudáveis, com fins unicamente didáticos. Zanetti explica: “Naquela época, aulas demonstrativas eram amplamente aceitas. Fazíamos castração de ratos para depois acompanhar o peso, a glicemia e outras coisas. Era absolutamente desnecessário castrar um animal apenas para ver o que acontece, uma vez que isso já era sabido há tempos”.

Algumas situações marcaram sua trajetória acadêmica: em uma aula de Imunologia, os alunos tiveram que induzir um choque anafilático em porquinhos-da-índia. “Na primeira semana nós imunizávamos o animal, na segunda, dávamos um reforço, na terceira, outro reforço. Após esses reforços, os porquinhos, que são muito suscetíveis à alergias, desencadeavam um processo de choque anafilático. Eles tinham dificuldades respiratórias, defecavam e urinavam na bancada. Era um sofrimento! Tentávamos, então, recuperá-los com medicamentos, meramente para ver o que acontecia. Foi uma matança geral, quase nenhum se salvou.”

Mas, justamente em sua bancada, um porquinho sobreviveu: “Ficou lá todo caído, baqueado, mas não morreu. Aí perguntei para a professora: ‘O que vai acontecer com esse bichinho? Volta para a gaiola?’ Ela disse: ‘Não. Os animais que usamos em aulas e pesquisa são todos sacrificados.’ Aquilo me chocou. Imediatamente pensei: ‘Mas ele sobreviveu! E agora vamos simplesmente matar?’”. Para salvar o animal, Zanetti decidiu levá-lo para casa. “Enfiei na minha mochila e fiquei torcendo para que ele não gritasse, porque eu tinha uma viagem de quatro horas até Jundiaí. Peguei ônibus, trem, metrô… O fato é que consegui chegar com ele em casa, e ele sobreviveu e morou no meu quintal por mais dois anos. Batizei ele com o nome do medicamento que usamos para salvá-lo: Fernegan. Eu adorava o bicho. Ele viveu feliz lá em casa.”

A história chegou aos ouvidos da professora de Bioquímica Yara Maria Michelacci, de quem Zanetti gostava muito. “Ao final da disciplina, ela deu para cada aluno um mapa das vias metabólicas, com uma dedicatória personalizada. Na minha ela escreveu: ‘Que na minha vida profissional eu nunca perdesse o amor pelos animais’. Naquela época não entendi muito bem. Hoje, vendo em retrospectiva, percebo que ela já sabia o que a vida profissional faria comigo.”

Pesquisa com animais

Assim que concluiu a graduação, Zanetti ingressou no mestrado, na área de virologia em raiva. “Na metade da década de 1980, o modelo para tudo o que se fazia em raiva era essencialmente o camundongo. Aí a coisa se naturalizou. Eu fazia inoculação de vírus, esperava a doença se estabelecer, para depois fazer diagnósticos, testar vacinas… Nesses bichinhos, a raiva tem uma evolução muito rápida. Entre cinco e sete dias eles começam a ficar paralíticos e têm dificuldade de alcançar água e comida. Era uma coisa natural, esperar o animal morrer, só para ver em quantos dias isso acontece.”

O professor relata que “fazia coisas bem traumáticas” e se sentia muito mal. “Com frequência chegava em casa com enxaqueca, mas não percebia que aquilo estava associado ao meu trabalho.” Nos anos seguintes, o uso de animais se intensificou. “Em determinado momento, meu orientador disse: ‘Vamos ter que produzir mais anticorpos e não dá para fazer isso em camundongos, teremos que inocular coelhos.’ Tínhamos, então, cinco coelhos e eu era responsável por imunizá-los. Injetava vacina e, depois de várias semanas, era a hora de sangrá-los.”

Na primeira vez, Zanetti não sabia como tirar o sangue dos coelhos e recorreu ao orientador. “Ele me pediu para segurar o animal, porque o sangramento seria por punção cardíaca. Uma agulha bem grossa atingiria diretamente o coração do bicho. Eu me surpreendi, pois não sabia que era possível perfurar o coração e ele não morrer.” Naquele momento ele descobriu que, justamente para que o animal não morresse, era preciso segurá-lo com muita força. Qualquer movimento que fizesse, a agulha poderia rasgar o coração do coelho e matá-lo. “Meu orientador repetia ‘Segura firme! Segura firme!’, e foi aquela tensão…”

Naquela noite, Zanetti teve um sonho perturbador. “Sonhei que a esposa do meu orientador me dizia: ‘Carlos, preciso de um pouco de sangue.’ Respondi: ‘Não tem problema, pode tirar.’ Era comum nós mesmos doarmos sangue um para o outro, para os experimentos. Mas aí ela falou: ‘Terá que ser por punção cardíaca.’ Pegou uma agulha e enfiou no meu coração. Nesse momento eu senti dor e acordei.” Zanetti se emociona ao recordar todos esses momentos. “O que ainda sobrava em mim de solidariedade com os bichos foi se apagando. Passei por um processo crescente de dessensibilização. Criei um mecanismo psíquico, mental e emocional para não sofrer mais. Aquilo se tornou rotina e eu de fato comecei a tratar os camundongos como ‘coisa’.”

Durante o doutorado, que também cursou na Escola Paulista, fez um período sanduíche na França. “Foi só lá, em 1990, quando vi pela primeira vez algum tipo de cuidado com os animais. Ainda não era um tratamento ético, mas havia uma preocupação. Eles exigiam que fizéssemos um curso para aprender a mexer com animais, o que eu nunca tinha visto no Brasil. Meu orientador francês, em todas as vezes em que faríamos experimentos, trazia cenoura, aveia e arroz para os bichinhos. Ele me explicou porque fazia isso: ‘Eles sofrem tanto e nos dão tanto, então podemos pelo menos dar algo em troca.’ Era um gesto muito simples, mas achei encantador.”

Novos passos

Ainda antes de concluir o doutorado, Zanetti foi aprovado em um concurso para pesquisador científico do Instituto Pasteur, em São Paulo. “Trabalhei no Pasteur por 11 anos, onde continuei fazendo experimentos, mas já com vontade de diminuir o uso de animais.” Em 1997, assim que assumiu o cargo de professor da UFSC, passou a integrar o Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos, como representante do Centro de Ciências Biológicas. A experiência, segundo ele, foi muito produtiva. “Fui obrigado a pegar livros, estudar e ler muito. Muitos professores ficavam bravos, diziam que um comitê de ética só iria atrapalhar. Mas isso era realmente necessário porque havia um histórico de abusos. Na história da Medicina, era corriqueiro que cientistas usassem negros, pobres e imigrantes para fazer experimentos sem que os pacientes sequer soubessem. Milhares morreram.”

Gradualmente, a comunidade científica e autoridades governamentais criaram mecanismos para proteger os indivíduos e evitar que tragédias ocorressem. Dois marcos nessa mudança, no século XX, foram o Código de Nuremberg e a Declaração de Helsinque, que definiram diversas regras a serem cumpridas nas pesquisas com seres humanos. Porém, dentre os dez princípios éticos do Código de Nuremberg, um deles previa que qualquer experimento deveria ser realizado, primeiramente, com animais. “Esses dois documentos foram fundamentais para a ética em pesquisa com seres humanos. E eles foram evoluindo, eram sempre atualizados para proteger cada vez mais os pacientes. Mas a exigência de se fazer experimentos com animais nunca foi revista, o que acabou legalizando e naturalizando essa prática.”

Em 2000, por determinação de uma lei federal, a UFSC instituiu a Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA), e Zanetti voltou a integrar o grupo. Além de representantes dos departamentos que utilizam animais, também tiveram assento no comitê uma professora do curso de Filosofia e um membro da Sociedade Protetora dos Animais. “Foi um processo de construção bem difícil, pois as linguagens eram muito diferentes e ninguém sabia bem do que se tratava. Precisávamos, primeiro, fazer as normativas para a CEUA funcionar.” As normativas nacionais só foram definidas em 2009. Mas, desde 2004, todos os pesquisadores da universidade que utilizassem animais em suas pesquisas só poderiam fazê-lo após submeter um protocolo para aprovação na CEUA.

“Teve muito desentendimento. No assento da Filosofia, estava a professora Sônia Felipe, que já tinha uma história acadêmica voltada à defesa dos animais. Quando falavam de ética, ela corrigia: ‘Isso não é ética. A ética precisa de princípios. Qual princípio vocês usam para prender um animal? Vocês dizem que estão alojando, mas ele está preso. É prisão perpétua, sem ter cometido crime.’ Ela corrigia os pesquisadores o tempo todo. Quando diziam ‘vamos sacrificar’, ela respondia: ‘Isso não é sacrifício, o autor desse projeto precisa colocar aí que ele vai matar.’ Isso gerava grandes discussões”, relata o professor. Como os pesquisadores que utilizavam animais eram maioria, os projetos acabavam sempre aprovados. “As pessoas ficavam com medo de votar contra. Eu mesmo me sentia muito constrangido de levantar a mão contra os projetos. Mas fui vendo que tinha uma incoerência entre os parâmetros que usávamos para seres humanos e para não humanos. Se os animais são tão parecidos conosco, a ponto de se justificar usá-los para estudos prévios, por que a lei não os protege? Aquilo foi me transformando e fui de novo atrás de estudar.”

Zanetti leu, além de artigos sobre Bioética, os livros da própria professora Sônia e “Ética prática”, do filósofo Peter Singer. “Logo entendi que aula demonstrativa com animais não deveria mais existir. Parei de usar e falei, em uma reunião de colegiado, que já não deveria ser assim. Na Europa e outros lugares ninguém mais fazia isso. Havia muita resistência, mas meus colegas da área de Imunologia não demoraram a abolir.” A professora Célia Regina Barardi decidiu filmar todas as aulas práticas de um semestre, o último em que ela usaria animais, e convidou Zanetti para gravar uma apresentação para o vídeo. “Nessa apresentação eu falo: ‘Esses animais que vocês verão aqui foram os últimos que morreram com fins de ensino.’ Fomos o primeiro departamento da UFSC a abolir o uso de animais em aulas práticas. E isso influenciou todo mundo.”

Gradualmente, suas convicções foram se fortalecendo. Na CEUA, passou a votar contra o uso de animais – apesar de ser sempre voto vencido. “Foi um processo progressivo. Antes eu usava 100 camundongos por ano, depois passei a usar apenas seis. E deixei de treinar meus alunos. Pensava: ‘Pelo menos de mim essas práticas não saem mais.’ Até que chegou um dia em que havia apenas um último camundongo em uma caixinha, que uma aluna de mestrado tinha acabado de usar e não precisaria mais. Ela me disse: ‘Precisamos de espaço e vamos sacrificá-lo.’” Zanetti decidiu então que ele mesmo faria isso. E se emocionou novamente ao se lembrar do último camundongo que teve que matar: “Abri a caixinha e vi ele sozinho. Quando são 20 ou 30, basta colocar em uma câmara de CO2 e eles morrem na hora. Mas quando é só um, fazemos deslocamento da coluna cervical, puxando o rabinho e a cabeça. Quando tive que fazer isso com esse último, foi terrível, terrível.”

O professor afirma que não teve alternativa, pois o animal havia sido inoculado com vírus e não poderia mais ser solto. Ele segurou o camundongo cuidadosamente com as mãos e pediu-lhe perdão. “Aquilo me marcou muito, e me marca até hoje. Vi como era arrogante eu determinar que aquele bichinho deveria morrer. Eu me coloquei no lugar dele e pensei: ‘Não quero que  façam isso comigo, não dá mais para viver essa hipocrisia.’ Olhava para ele, todo dócil na minha mão, e sabia que não queria mais isso na minha vida.”

Criou-se então um vácuo em sua carreira. “Eu me perguntava: ‘O que faço agora?’ Até hoje me considero uma pessoa cuja maior expertise é com estudos de raiva. Eu ainda colaborava com o Instituto Pasteur e comecei a pensar em como poderia influenciá-los.” Zanetti passou então a trabalhar com cultura de células suscetíveis ao vírus. “Isso não era nenhuma novidade, mas ainda não havia ninguém aqui que fizesse isso. As pessoas diziam ‘Isso só fazem nos EUA e na Europa, aqui é difícil.’” Com sua contribuição, hoje o Instituto realiza a maioria dos diagnósticos via cultura celular. “Eles têm uma rotina de análises gigantesca. Ainda não aboliram o uso de camundongos, mas diminuíram radicalmente. O mundo está sempre tão ávido por coisas modernas, por novidades, e eu me questiono: matar, mutilar e tirar os tecidos de um animal pode ser de alguma forma moderno? Isso é prática de séculos e séculos passados.”

Em 2002, Zanetti e seu então orientando de mestrado, Juliano Bordignon, desenvolveram experimentos com uma técnica alternativa ao uso de camundongos, a citometria de fluxo – método que possibilitou a detecção de partículas virais intracelulares, permitindo a verificação de vários parâmetros ao mesmo tempo. Os pesquisadores também elaboraram um padrão para detectar e quantificar anticorpos em pessoas vacinadas. Publicaram os resultados do trabalho na revista internacional Journal of Virological Methods. “Nosso artigo fez bastante sucesso, a ponto de um comitê de especialistas vinculado à Organização Mundial de Saúde (OMS) ter nos convidado para escrever dois capítulos de um livro sobre técnicas de pesquisa em raiva. Esse é um dos meus maiores legados aqui. Muitos autores referenciaram nosso trabalho, em vários países.”

O professor passou a ser convidado a dar aulas, palestras e cursos sobre Bioética em todo o país. “Eu estava com uma vontade enorme de percorrer um caminho inverso. Então me prometi que, em todas as vezes que tivesse chance, eu abordaria essas questões. Tenho isso como missão.” Ele também é frequentemente requisitado a discursar nas cerimônias de formatura das turmas de graduação. Já foi patrono de duas turmas, paraninfo de cinco e professor homenageado de 13. Nessas ocasiões, faz questão de incluir o assunto em seus discursos: “Precisamos mudar nossa visão de mundo em relação
aos animais.”

Influência

Ao longo de sua trajetória, Zanetti vem influenciando muita gente. “Acho incrível o poder de multiplicação que temos dentro da universidade. Todas as pessoas mais próximas de mim estão em um processo de mudança.” Uma delas é seu amigo e professor da UFSC Aguinaldo Pinto, que também deixou de usar camundongos para testar vacinas de HIV. O pesquisador passou a atuar junto a hospitais públicos, realizando pesquisa com pacientes infectados com o vírus. “Isso é muito mais proveitoso para a sociedade e não interrompeu a carreira dele, muito pelo contrário. Hoje ele estuda sorotipos de HIV, ou seja, variações genéticas do vírus no estado de Santa Catarina, para saber quais circulam por aqui. Isso não existia antes.”

Zanetti relata essas mudanças com satisfação: “Sinto que estou deixando uma semente.” Entre os estudantes, a contribuição do professor também tem sido significativa. No segundo semestre de 2017, ele ofereceu pela primeira vez a disciplina optativa “Aspectos éticos em pesquisa e ensino com animais”. Inédita na maioria das instituições de ensino, o conteúdo teve ótima receptividade e todas as vagas disponíveis no ano seguinte foram preenchidas. “Acrescentou bastante na minha formação”, avalia o aluno Willian Silva. “Nunca amei tanto uma disciplina. Extremamente inspiradora. Todo mundo deveria fazer!”, diz Núbia de Oliveira.

As aulas têm a participação de especialistas de diferentes áreas do conhecimento, como Ecologia, Filosofia e Direito. Entre eles está a professora Paula Brügger, que afirma ter grande satisfação em colaborar nas aulas: “É muito importante falarmos disso porque não é só uma questão ética. Os estudantes e a população em geral precisam saber que o uso de animais como modelos de seres humanos não é apenas antiético, por causar sofrimento, mas também anticientífico. Infelizmente existem obstáculos culturais, econômicos e institucionais que impedem a mudança.” Para Sônia Felipe, responsável por lhe despertar muitas dessas reflexões, “Zanetti é um raro cientista, um exemplo do que será a ciência do futuro: nada de testes em animais”.

Mexa-se!

19/12/2019 15:54

Estudo aponta relação entre falta de atividade física e mortes por câncer de mama

Nicole Trevisol

Falar sobre câncer não é fácil, ainda mais quando é com alguém que passou por procedimentos dolorosos em busca da cura. Ao localizar uma fonte para esta reportagem, de pronto tive retorno de Beatriz Bittencourt da Roza, 67 anos, que havia descoberto o câncer de mama em um exame de rotina em 2017. Quando eu e meu colega de Agecom, Pipo Quint, nos preparávamos para encontrar Beatriz para a entrevista e o registo fotográfico, o estereótipo de uma pessoa doente vinha a minha mente: fraca, apática, com mobilidade reduzida. Tudo isso caiu por terra ao vê-la vindo em nossa direção no pátio do Hospital Universitário (HU). O sorriso largo estampava o seu rosto maquiado para as fotos, o cabelo lindamente arrumado e o traje mostravam parte da sua identidade: forte, comunicativa, firme, vaidosa, única.

Beatriz enfrentou o mais comum dos cânceres entre as mulheres: o de mama. Em 2017, este câncer foi a principal causa de morte feminina no mundo, além de ser o responsável por anos de vida saudável perdidos (DALYs – Disability Adjusted Life Years), segundo uma pesquisa internacional liderada pelo professor Diego Augusto Santos Silva, do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Santa Catarina (DEF/UFSC), e publicada na revista Nature em 2018.

Desenvolvida na UFSC, a pesquisa “Mortality and years of life lost due to breast cancer attributable to physical inactivity in the Brazilian female population (1990 – 2015)” contou com a parceria do Ministério da Saúde, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da University of Washington (EUA) e analisa a evolução do câncer de mama, óbitos, bem como os anos de vida perdidos durante a doença de 1990 a 2015 no Brasil. Essa pesquisa foi comparada com outros estudos realizados em diversas partes do mundo. O estudo reflete sobre esses índices relacionados com fatores de risco, sendo um deles a falta de atividade física entre as mulheres, especialmente em um tipo de câncer que, além de ter alta mortalidade, é causador de morbidade precoce.

Atividade física e redução de riscos

A pesquisa divulgada na Nature aponta que altos níveis de atividade física ao longo da vida, ou seja, antes do diagnóstico, reduziram significativamente o risco de morte entre pacientes de câncer de mama, comparados aos que tinham baixa ou nenhuma rotina de prática desportiva. “Reduções significativas de risco para morte relacionada ao câncer de mama também foram demonstradas para atividade física recreativa pré-diagnóstico mais recente, atividade física pós-diagnóstico e cumprimento das diretrizes recomendadas de atividade física pós-diagnóstico”, explica Diego.

Quando Beatriz descobriu o câncer em fevereiro de 2017 precisou se submeter a uma cirurgia três meses depois. Seu corpo mudou, procedimentos invasivos foram necessários e, com isso, sua rotina passou por adaptações. Mas um fator, neste contexto, foi primordial para que o seu processo de cura e recuperação fosse mais autônomo: a atividade física.

“Adepta do ferro”, como ela mesma diz, praticou musculação desde muito jovem e entre 1980 e 1990 abriu uma academia de musculação mista em Florianópolis para que as mulheres pudessem iniciar nessa prática desportiva. “Sempre gostei de correr, cuidar do corpo, os exames de saúde sempre foram e ainda são periódicos. Acredito que ter um corpo em forma e fortalecido ajudou na minha recuperação, que foi mais rápida”, afirma Beatriz. 

Depois da cirurgia a atividade física de Beatriz precisou ser “reduzida à força”, segundo ela. Mas, nem por isso, a movimentação do corpo ficou de lado. Sua principal decisão foi manter um cronograma similar ao que costumava fazer, quando ia diariamente à academia no mesmo horário. “Como eu não conseguia ir até lá, em casa mantive a rotina de acordar cedo, arrumar a cama, fazer tarefas domésticas, tomar ar puro, estar em contato com a natureza”, relata ela. “A atividade física foi fundamental para manter a minha autoestima e me ajudar na recuperação”, completa.

A mulher e o câncer de mama

No Centro de Pesquisas Oncológicas (Cepon) de Florianópolis, a incidência de câncer de mama é a mais alta entre as pacientes atendidas. Essas informações estão relacionadas diretamente com as transformações que o corpo da mulher passa ao longo dos anos.

No Brasil, a mortalidade por câncer de mama atribuível a todas as causas, todos os fatores de risco e inatividade física cresceu com o aumento da idade das mulheres nos últimos 25 anos, segundo dados da pesquisa de Luciana Martins da Rosa, professora do Departamento de Enfermagem da UFSC e pesquisadora do grupo “Cuidando e Confortando”, que atuou por 20 anos como enfermeira no Cepon.

Com o processo de envelhecimento, alterações hormonais significativas acontecem no corpo feminino, “o tecido adiposo (especializado em guardar gordura no interior da célula) produz mais estrogênio, principalmente quando se está na pós-menopausa”, explica a professora de Enfermagem.

O estrogênio é um dos hormônios que podem causar câncer de mama, além de poder estimular a produção de radicais livres que danificam a genética do interior da célula. “Assim, a atividade física reduz o estradiol (um dos quatro estrógenos) e aumenta a globulina relacionada aos hormônios sexuais, que tem a função de reduzir a quantidade de estradiol”, aponta o artigo científico.

Por isso, o aumento de peso entre as mulheres é fator de risco para o surgimento do câncer de mama, uma vez que o tecido ‘gordo’ está produzindo o estrogênio. “Ele contribui para o desenvolvimento do câncer ou para que, mesmo depois do tratamento, a doença volte. Se a mulher não tem o hábito da atividade física, precisa desenvolver”, salienta Luciana.

A pesquisa também aponta que os estados brasileiros com melhores indicadores socioeconômicos apresentaram maiores taxas de morte por câncer de mama devido à inatividade física: Rio de Janeiro (1º), Rio Grande do Sul (2º) e São Paulo (3º).

Os resultados da pesquisa liderada por Diego Silva vão além e revelam que a atividade física pode reduzir os níveis de insulina na corrente sanguínea e aumentar a quantidade de substâncias anti-inflamatórias no organismo, fatores primordiais na prevenção do câncer de mama.

Mudança de hábitos

O início de uma rotina de exercício físico na vida do ser humano é algo que precisa ser desenvolvido. Para isso, é necessária uma mudança de hábitos, seja como ação preventiva, seja como um sistema de cuidados à saúde após um diagnóstico.

Luciana ouviu de um paciente que, para algumas pessoas, o câncer é como um divisor de águas, pois, passado o medo, surge a vontade de sobreviver: “A pessoa começa a olhar a vida de uma maneira diferente e faz mudanças substanciais no seu estilo de vida”. Para todos os tipos de câncer é preciso ter uma boa alimentação, fazer atividade física e verificar se há herança genética na família. “Não se trata de etnia, mas sim de hábitos que levam ao câncer”, frisa a professora.

Há duas situações importantes relacionadas ao câncer: a atividade física como prevenção e como fator fundamental de recuperação. No caso de Beatriz, a prática de musculação ajudou nas duas ocasiões: ela manteve a musculação até 15 dias antes da cirurgia por orientação médica; porém, após a cirurgia, chegou em casa e não conseguia subir dois degraus.

“Isso é inacreditável, o corpo inteiro fica sem força, nada, nada. Até para levantar uma colher tem que ser forte. Tudo fica pesadíssimo. Se eu nunca tivesse feito atividade física eu teria ficado como muitas pessoas: dependendo de um familiar, sem conseguir caminhar, triste e infeliz, porque o corpo não reage”, relata Beatriz.

No caso dela, a atividade física ajudou na prevenção, porque a prática deixa o corpo mais firme, e no tratamento,  porque o corpo se recuperou mais rápido. Durante a entrevista, Beatriz pediu, de maneira muito espontânea, para que eu tocasse em seus músculos do braço esquerdo. “Musculação deixa o corpo mais forte. Você pode me tocar, esse é meu braço operado. Você fica com estrutura muscular para recuperar o corte, na cicatrização, não tem nenhum ponto que incomode. Você fica sem força, mas você se toca e tem osso, tem pele, tem musculatura”, relata ela, feliz com o corpo fortalecido pela rotina de exercício físico.

Essa mudança de hábito entre as pessoas saudáveis é desejável e quem sabe, por isso, muitos deixam para depois. Mas para os pacientes em tratamento de câncer a mudança é urgente e difícil. “Muitos estão fragilizados emocionalmente, não têm apoio familiar, vivem preconceitos sociais, têm limitações da cirurgia, estão desanimados e tristes. Tem uma soma de situações em várias dimensões com a qual a pessoa se depara e precisa buscar uma força muito grande e que nem sempre todos conseguem”, explica Luciana.

Porém, muitas pessoas resgatam a vontade de viver, mudam a alimentação e incluem o exercício físico na vida. “Você adoeceu! Não adianta olhar o antes, é a partir do diagnóstico que você pode fazer escolhas para melhorar a sua vida e melhorar o enfrentamento da doença e do tratamento. A partir disso, a pessoa precisa fazer novas escolhas e mudar o estilo de vida. Infelizmente, a grande maioria não muda”, alerta Luciana.Boa alimentação e atividade física regular: dois hábitos que todo mundo sabe que são saudáveis, mas que exigem força e dedicação para se concretizarem. Esse equilíbrio permite que seu organismo tenha um sistema de defesa adequado para prevenir doenças ou enfrentar as que já foram diagnosticadas.

Suporte coletivo: o Grupo MoveMama

Diante dos comprovados benefícios dos exercícios físicos na luta contra o câncer, o Grupo MoveMama é desenvolvido dentro do Cepon com o objetivo de levar atividade física às pacientes com câncer de mama. Leonessa Boing, doutoranda em Ciências do Movimento Humano do Centro de Ciências da Saúde e do Esporte da Universidade do Estado de Santa Catarina (Cefid/Udesc), atua no projeto de pesquisa, que tem na coordenação a professora Adriana Coutinho de Azevedo Guimarães. Pilates, danças e alongamentos fazem parte da rotina de práticas aplicadas com as alunas-pacientes.

Grupos de apoio como esse vão além da atividade física e permitem que pacientes em tratamento de câncer interajam, troquem experiências e se ajudem de maneira mútua. “O grupo com a Leonessa foi muito interessante porque começamos a conversar, nos sentimos seguras, passamos pela atividade física, mas envolve muito mais: as pessoas fazem um esforço logístico enorme para estarem lá, trocar e conviver entre as colegas. Isso foi nos incentivando e nos liberando para viver esse momento, tudo foi uma caminhada coletiva que trabalhou corpo e mente”, apontou Beatriz.

Luciana enaltece que grupos como esse dão suporte e levam para dentro de instituições de saúde a prática desportiva. “Infelizmente, o profissional de Educação Física não faz parte do corpo clínico e, no meu ponto de vista, diante dos tempos atuais, esse profissional é extremamente importante para o cuidado com a saúde. Alguns estudos hoje mostram que não é possível controlar o câncer, mas outros falam sobre os benefícios da atividade física para a prevenção e um melhor prognóstico”.

Luciana ressalta que a dança faz o quadril das participantes ficar mais solto, as pernas mais firmes, a sensualidade resgatada, o despertar para a posição corporal, o relaxamento, o alongamento e, claro, a felicidade. Para Beatriz, que é assídua nas aulas, foi a atividade física que a ajudou a manter a sua autonomia durante o tratamento e, por exemplo, continuar dirigindo. “Muitas colegas que conheci e convivi enfrentaram falta de apoio familiar e isso, aliado com a doença, fez elas ficarem muito deprimidas”, explica Beatriz.

“Meu corpo pedia por atividade física porque ele estava acostumado, então incluí práticas na minha rotina, isso foi muito difícil. Então digo: mulheres, sejam vaidosas, cuidem de vocês, façam os exames de rotina, se apeguem à família, à fé, se mantenham ativas”, fala Beatriz.

Lixo importado

19/12/2019 15:37

Pesquisa propõe gestão global de resíduos com justiça socioecológica

Karina Ferreira

Há 10 anos, a imprensa divulgava que cerca de 1,5 mil toneladas de seringas, fraldas descartáveis sujas, resíduos de banheiros químicos, preservativos usados, pilhas, entre outros materiais perigosos, haviam chegado a portos brasileiros em 89 contêineres vindos do Reino Unido. A importação fere a legislação internacional sobre a transferência de resíduos entre países e era, portanto, ilegal. A notícia foi recebida com perplexidade pela agora doutora em Direito, Kamila Pope, que, desde então, se debruçou analisando a regulamentação jurídica internacional sobre a transferência transfronteiriça de resíduos entre países dos chamados Norte e Sul global.

A pesquisa, orientada pelo professor José Rubens Morato Leite e coorientada pela professora Melissa Ely Melo (Univali), se transformou em tese de doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC, e foi uma das vencedoras do Prêmio Capes de Tese de 2019.

Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, o país que recebe o lixo está pagando por ele. A justificativa é a de que, embora tenhamos uma alta produtividade de resíduos, nossa coleta seletiva é ineficiente para prover materiais para a indústria nacional de reciclagem. A “solução” seria importar resíduos dos países industrializados. Os principais fatores que impulsionam essa transferência são as altas metas de reciclagem dos países do Norte, somados à vulnerabilidade econômica e política dos países do Sul. Assim, os custos econômicos para a destinação dos resíduos acabam sendo mais baratos em países em desenvolvimento do que nos desenvolvidos.

A crítica da pesquisadora é justamente à lógica mercantilista que rege essas transferências que, formando um comércio, não levam em consideração as comunidades que recebem esses resíduos. “Não é possível que a gente continue transferindo resíduos com a justificativa da sustentabilidade ecológica para a reciclagem, sendo que esse processo é feito de forma extremamente poluente para a comunidade e degradante para as pessoas que trabalham com isso, de forma manual, sem proteção, sem garantias de que a saúde não seja afetada”, afirma a pesquisadora.

O trabalho, que analisou a legislação internacional da transferência de resíduos do ponto de vista ecológico e social, concluiu que as regulamentações são ineficientes. A Convenção de Basileia, ratificada no Brasil em 1993, só abrange os resíduos considerados perigosos ou especiais. A decisão da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) – um instrumento legal que abrange temas ambientais – vale apenas para países membros, excluindo portanto o Brasil. Os resíduos considerados não perigosos, destinados ao descarte, não têm nenhuma legislação internacional, por exemplo, o que demonstra uma importante lacuna na legislação. Kamila também analisou a regulação da União Europeia e do Brasil, e conclui que ambas apresentam limitações. Frente à inexistência de um modelo global de gestão justo e ecologicamente sustentável para as presentes e futuras gerações, Kamila criou um novo.

A tese será publicada em inglês, no Reino Unido, onde Kamila mora atualmente, e assim que encontrar uma editora, também o fará no Brasil. Sobre a premiação, a pesquisadora diz que é uma honra ter esse reconhecimento pelo trabalho, que contou com um grande esforço coletivo e suporte de seus mestres e de sua rede de apoio. Kamila também agradece ter tido “o privilégio de ter toda a sua formação superior na UFSC, 100% gratuita e de qualidade”.

“As questões ecológicas exigem um rompimento de barreiras entre as áreas de conhecimento e a ligação com nossas bases ontológicas, para que ele possa de fato se complexificar e progredir. Esse prêmio, para mim, é uma prova que é esse o caminho: precisamos dialogar cada vez mais e derrubar muros”, conclui
a advogada.

Prêmio Capes de Tese

Kamila venceu o Prêmio Capes de Tese 2019 pelo trabalho “Transferência transfronteiriça de resíduos: rumo a uma gestão internacional de resíduos sob a perspectiva da Justiça Ecológica” na área de Direito. Sua tese recebeu elogios da Comissão de Avaliação do Prêmio, que entendeu que a pesquisa “destaca-se pela originalidade da temática escolhida, tendo em vista os poucos estudos acerca de resíduos no direito sob a ótica da justiça socioecológica, com notável relevância no aspecto do desenvolvimento científico, tecnológico, cultural e social, inovando ao apresentar estratégias de um marco legislativo Internacional”.

ICE

19/12/2019 15:27

Segurança nos extremos do mundo (e fora dele)

Gabriel Martins

“Em caso de despressurização, máscaras de oxigênio cairão automaticamente dos compartimentos localizados acima dos assentos”. Esta e outras medidas anunciadas a todos os que viajam em aviões comerciais são exemplos de protocolos de segurança. No decorrer de um voo uma série de observações também são transmitidas aos comissários de bordo, estabelecendo os passos que devem ser seguidos e a rotina de verificações de equipamentos e orientações aos passageiros. Os protocolos são determinações de segurança preventiva e rotinas de trabalho. Há locais em que os protocolos de segurança são ainda mais necessários: os ambientes isolados, confinados e extremos (ICE), como os polos, as plataformas oceânicas de petróleo e as estações espaciais. O que torna esses lugares delicados não é somente o seu caráter extremo, mas o estresse físico e psicológico que a permanência neles implica. Um dos trabalhos científicos pioneiros nesses estudos se desenvolve na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que, desde 2014, realiza um projeto de pesquisa junto ao Programa Antártico Brasileiro (Proantar) para elaborar protocolos de segurança em ambientes confinados, isolados e extremos, o estudo “Fatores Humanos em Regiões Polares”.

Comportamento seguro e acidentes em ambientes ICE

Em 2012, um acidente na estação de pesquisa brasileira na Antártica ocasionou um incêndio que matou dois cientistas e causou a perda de meses de estudos científicos. A investigação concluiu que o incêndio ocorreu devido a um erro humano na verificação dos protocolos de segurança. A tragédia, no entanto, não é um caso isolado em expedições em locais ICE. Em ambientes hostis como esses, os protocolos de segurança podem ser insuficientes se forem limitados a rotinas de verificação de equipamentos e suprimentos, sem considerar os fatores humanos envolvidos na permanência em locais dessa natureza. Estar em locais isolados, por longos períodos, convivendo com um pequeno – e por vezes diferente – grupo de pessoas pode acarretar em desgastes psicológicos que corroem anos de treinamento técnico. Com isso, pouco a pouco pesquisas são desenvolvidas visando compreender as variáveis psicológicas em ambientes isolados, confinados e extremos. Esses estudos consideram que a longa estada nesses locais implica alterações biológicas e comportamentais que podem resultar em desastres.

Ambientes ICE: quando o risco não é somente ambiental

ICE são todos os ambientes com a combinação de duas ou mais das seguintes características: isolado, confinado e extremo. Os ambientes ICE podem ser naturais ou frutos do trabalho humano:

Naturais Criados pelo ser humano
  • cavernas
  • desertos
  • polos
  • montanhas distantes
  • plataformas oceânicas de petróleo
  • embarcações que realizam longas viagens
  • submarinos
  • estações espaciais

A definição de ICE considera não somente as características do ambiente em si, mas de seu entorno e de sua dinâmica (isolado). Assim, os fatores ambientais – como clima e estrutura – devem ser acrescidos aos efeitos biológicos e psicológicos decorrentes de ficar por muito tempo em um lugar que, além de extremo ambientalmente, também pode implicar isolamento social ou confinamento.

Paola Barros Delben, coautora do projeto, alerta que fatores como baixa exposição solar, convivência constante com o mesmo grupo de pessoas, afastamento de amigos e família, dificuldades em acomodação, ausência de opções de lazer, desconforto e a baixa variedade de alimentos, entre outros, “podem acarretar mudanças comportamentais que colocariam em risco os envolvidos em missões científicas, militares, comerciais ou mesmo esportivas”.

Fatores que podem desencadear modulações de comportamento
  • Saudade de familiares;
  • dificuldades em conciliar culturas e visões de mundo distintas em equipes variadas;
  • conviver com as mesmas pessoas reunidas por longos períodos;
  • isolamento;
  • clima;
  • temperatura;
  • dificuldades com alterações alimentares;
  • longas jornadas de trabalho;
  • repetitividade de atividades;
  • alterações hormonais e carências decorrentes de baixa exposição solar ou alterações na dieta alimentar.

Em ambientes ICE, em que os riscos à vida são maiores que em voos comerciais, mais do que checar equipamentos e realizar rotinas, é necessária a capacidade psicológica para lidar com o isolamento ou o confinamento por longos períodos. Os efeitos psicológicos de eventos recorrentes a ambientes isolados, confinados e extremos podem significar alterações hormonais e de humor e estresse físico e psicológico. A combinação de um ou mais desses fatores pode ocasionar um efeito ainda mais nocivo: a modulação de comportamento. Este fenômeno significa que toda pessoa, quando desgastada por fator estressor, pode agir de maneira imprevista. Isso pode prejudicar a cooperação entre equipes e colocar em risco o que é conhecido como comportamento seguro, ou seja, a atenção cotidiana aos protocolos de segurança.

Segurança no extremo sul do mundo

A Antártica é um ambiente ICE e, por isso, a observação a uma série de protocolos de segurança é indispensável. Por exemplo, o cuidado com as formas de produção de energia, estabilização da temperatura ou filtragem de água e ar. Nesse sentido, o projeto “Fatores Humanos em Regiões Polares” tem por objetivo desenvolver uma proposta de gerenciamento do comportamento seguro, o que tende a prevenir o risco de acidentes, os adoecimentos e as crises entre os integrantes das equipes de trabalho.

O projeto se baseia em pesquisas de campo nas áreas de atuação do Proantar e envolve uma equipe interdisciplinar com pesquisadores da área de Psicologia, Biologia, Medicina, Engenharia Mecânica, Direito, entre outros.

Desde 2014, o projeto é coordenado por Roberto Moraes da Cruz, professor do Departamento de Psicologia da UFSC, e tem coautoria de Paola Barros Delben. Foi na graduação que Paola apresentou a proposta de estudar os fatores psicológicos em ambientes ICE. Ela segue focada nessa área de pesquisa, desde a iniciação científica (Pibic) na graduação e, até hoje em dia, em seu projeto de doutorado,sempre sob orientação do professor Roberto. O estudo conta, ainda, com a colaboração da pesquisadora Agnieszka Skorupa, do Centro de Estudos Polares da Polônia que, em 2019, estendeu o campo de estudo ao Ártico.

Paola tem participado, desde o princípio do projeto em 2014, de expedições ao continente meridional onde acompanha e realiza pesquisas com cientistas e militares em etapas antes e depois das missões.

Como resultado da pesquisa, o projeto tem sido pioneiro no desenvolvimento de protocolos de segurança que consideram os fatores humanos, além dos ambientais, para assegurar formas seguras para longas missões em ambientes ICE.

Pós-doutorando da UFSC é selecionado para o 69th Lindau Nobel Laureate – Physics

05/06/2019 10:14

O pós-doutorando da UFSC que desenvolve sua pesquisa junto ao Laboratório de Filmes Finos e Superfícies (LFFS), Miguel H. Boratto, foi selecionado para participar do 69th Lindau Nobel Laureate – Physics, que ocorrerá entre 30 de junho e 05 de julho. Nesse evento cerca de 40 ganhadores do prêmio Nobel em Física se encontram com 580 jovens cientistas do mundo todo para troca de experiências e conhecimento científico. O evento internacional ocorre desde 1951, e possui cooperação com mais de 200 instituições renomadas de pesquisa em ciências do mundo todo para indicação de participantes qualificados para o evento. Estudantes e jovens pesquisadores são nomeados por esses parceiros acadêmicos para inscreverem-se no processo de seleção para participar do evento.

O 69th Lindau Nobel Laureate – Physics conta com diferentes sessões de interação com os ganhadores do Nobel, como: master classes, panel discussions, poster, open exchange, Science walks, science breakfast.

Mais informações aqui.

Podcast UFSC Ciência Ep. 3 – Cuidado com o repuxo…

29/05/2019 13:41

Correntes de retorno são o tema do novo episódio do podcast UFSC Ciência. O professor da Coordenadoria Especial de Oceanografia da Universidade Federal de Santa Catarina Pedro Pereira foi entrevistado Laboratório de Radiojornalismo da UFSC.

Ouça através do player abaixo:

Download | iTunes | Feed | Spotify

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CRÉDITOS:

Entrevistador: Caetano Machado
Roteiro: Erick Souza, Maria Clara Flores e Caetano Machado
Produção: Caetano Machado, Erick Souza, Maria Clara Flores, Leonardo Reynaldo e Mayra Cajueiro-Warren
Apoio Técnico: Peter e Roque
Edição: Yusanã Mignoni e Lucas Villar
Música Tema: “Alegorias de Verão”, Modernas Ferramentas Científicas de Exploração.

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O podcast UFSC Ciência é uma produção da Agência de Comunicação da UFSC. Gravado no Laboratório de  Radiojornalismo da UFSC e editado no Laboratório de Gravação e Edição de  Som do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC.

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Mais informações, críticas, elogios, sugestões pelo e-mail podcast@contato.ufsc.br.

UFSC Explica: Agrotóxicos

07/05/2019 18:47

O tema deste episódio do UFSC Explica é agrotóxicos. Por que os agrotóxicos são utilizados? Quais as consequências do uso de agrotóxicos a curto, médio e longo prazo? Há alternativas ao uso de agrotóxicos para a produção de alimentos em larga escala? Para responder a essas e outras perguntas, conversamos com três pesquisadores da universidade que são especialistas no tema.

Rubens Onofre Nodari, professor titular do departamento de Fitotecnia do Centro de Ciências Agrárias da UFSC. Nodari pesquisa os efeitos de herbicidas em abelhas e sistemas de produção orgânica e agroecológica.

Pablo Moritz, médico do Hospital Universitário e coordenador do Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Santa Catarina.

Sônia Hess, professora titular do Departamento de Ciências Naturais e Sociais do campus Curitibanos da UFSC. Realiza pesquisas na área de Química Orgânica e Saneamento Ambiental.

Confira abaixo o vídeo, também disponível em nosso canal do YouTube.

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UFSC Explica: Previdência Social

15/04/2019 15:55

A Previdência Social é uma das mais antigas políticas públicas da modernidade, criada antes mesmo de a Educação e a Saúde serem direitos sociais. No centro de muitos debates nos últimos meses, a Previdência Social é o tema deste UFSC Explica.

Inicialmente constituída enquanto seguros aos agravos decorrentes do trabalho, a Previdência se desenvolveu de distintas formas em cada lugar do mundo. No Brasil, desde a Constituição Federal de 1988, a Seguridade Social é a política pública que abriga Previdência Social, Saúde e Assistência Social.

Para este episódio o UFSC Explica conversou com três pesquisadores com notório conhecimento científico no tema: Beatriz Augusto Paiva, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS/UFSC); Lauro Mattei, professor de Economia e coordenador do Núcleo de Estudos de Economia Catarinense (Necat/UFSC); e Edivane de Jesus, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Questão Social e América Latina (Nepqtsal/UFSC) e doutora com tese sobre a Previdência Social no Brasil.

Confira abaixo o vídeo, também disponível em nosso canal do YouTube.

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UFSC Explica: Dia Internacional da Mulher

08/03/2019 15:08

O Dia Internacional da Mulher, 8 de março, é celebrado todo ano, com o objetivo de não apenas homenagear as mulheres, mas em um contexto de lutas por melhores condições de vida e trabalho para as mulheres do mundo. Nesta data, a série UFSC Explica conversou com três pesquisadoras da UFSC a respeito da data, sua importância e como sobre o cenário histórico e atual das lutas das mulheres por direitos.

Confira as entrevistas com Marilise Sayão, professora da UFSC Blumenau, pesquisadora do grupo de estudos Alteritas; Miriam Grossi, professora do Departamento de Antropologia da UFSC, coordenadora-geral do Instituto de Estudos de Gênero (IEG); e Michele Leão, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC.

Confira o vídeo aqui e, em breve, a versão em Libras no canal da UFSC no Youtube.

UFSC Explica

A série UFSC Explica tem por objetivo apresentar perspectivas acadêmicas, com a participação de pesquisadores da Universidade, sobre temas relevantes e em evidência na atualidade. Confira os vídeos da série no canal da UFSC no YouTube.  Os vídeos da série foram desenvolvidos a partir de entrevistas com três pesquisadores da UFSC, cujas entrevistas completas estão disponíveis aqui.

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