Lixo importado
Pesquisa propõe gestão global de resíduos com justiça socioecológica
Karina Ferreira
Há 10 anos, a imprensa divulgava que cerca de 1,5 mil toneladas de seringas, fraldas descartáveis sujas, resíduos de banheiros químicos, preservativos usados, pilhas, entre outros materiais perigosos, haviam chegado a portos brasileiros em 89 contêineres vindos do Reino Unido. A importação fere a legislação internacional sobre a transferência de resíduos entre países e era, portanto, ilegal. A notícia foi recebida com perplexidade pela agora doutora em Direito, Kamila Pope, que, desde então, se debruçou analisando a regulamentação jurídica internacional sobre a transferência transfronteiriça de resíduos entre países dos chamados Norte e Sul global.
A pesquisa, orientada pelo professor José Rubens Morato Leite e coorientada pela professora Melissa Ely Melo (Univali), se transformou em tese de doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC, e foi uma das vencedoras do Prêmio Capes de Tese de 2019.
Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, o país que recebe o lixo está pagando por ele. A justificativa é a de que, embora tenhamos uma alta produtividade de resíduos, nossa coleta seletiva é ineficiente para prover materiais para a indústria nacional de reciclagem. A “solução” seria importar resíduos dos países industrializados. Os principais fatores que impulsionam essa transferência são as altas metas de reciclagem dos países do Norte, somados à vulnerabilidade econômica e política dos países do Sul. Assim, os custos econômicos para a destinação dos resíduos acabam sendo mais baratos em países em desenvolvimento do que nos desenvolvidos.
A crítica da pesquisadora é justamente à lógica mercantilista que rege essas transferências que, formando um comércio, não levam em consideração as comunidades que recebem esses resíduos. “Não é possível que a gente continue transferindo resíduos com a justificativa da sustentabilidade ecológica para a reciclagem, sendo que esse processo é feito de forma extremamente poluente para a comunidade e degradante para as pessoas que trabalham com isso, de forma manual, sem proteção, sem garantias de que a saúde não seja afetada”, afirma a pesquisadora.
O trabalho, que analisou a legislação internacional da transferência de resíduos do ponto de vista ecológico e social, concluiu que as regulamentações são ineficientes. A Convenção de Basileia, ratificada no Brasil em 1993, só abrange os resíduos considerados perigosos ou especiais. A decisão da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) – um instrumento legal que abrange temas ambientais – vale apenas para países membros, excluindo portanto o Brasil. Os resíduos considerados não perigosos, destinados ao descarte, não têm nenhuma legislação internacional, por exemplo, o que demonstra uma importante lacuna na legislação. Kamila também analisou a regulação da União Europeia e do Brasil, e conclui que ambas apresentam limitações. Frente à inexistência de um modelo global de gestão justo e ecologicamente sustentável para as presentes e futuras gerações, Kamila criou um novo.
A tese será publicada em inglês, no Reino Unido, onde Kamila mora atualmente, e assim que encontrar uma editora, também o fará no Brasil. Sobre a premiação, a pesquisadora diz que é uma honra ter esse reconhecimento pelo trabalho, que contou com um grande esforço coletivo e suporte de seus mestres e de sua rede de apoio. Kamila também agradece ter tido “o privilégio de ter toda a sua formação superior na UFSC, 100% gratuita e de qualidade”.
“As questões ecológicas exigem um rompimento de barreiras entre as áreas de conhecimento e a ligação com nossas bases ontológicas, para que ele possa de fato se complexificar e progredir. Esse prêmio, para mim, é uma prova que é esse o caminho: precisamos dialogar cada vez mais e derrubar muros”, conclui
a advogada.
Prêmio Capes de Tese
Kamila venceu o Prêmio Capes de Tese 2019 pelo trabalho “Transferência transfronteiriça de resíduos: rumo a uma gestão internacional de resíduos sob a perspectiva da Justiça Ecológica” na área de Direito. Sua tese recebeu elogios da Comissão de Avaliação do Prêmio, que entendeu que a pesquisa “destaca-se pela originalidade da temática escolhida, tendo em vista os poucos estudos acerca de resíduos no direito sob a ótica da justiça socioecológica, com notável relevância no aspecto do desenvolvimento científico, tecnológico, cultural e social, inovando ao apresentar estratégias de um marco legislativo Internacional”.