Com uma carreira dedicada à pesquisa e à docência, professor da UFSC defende um Direito plural, crítico e transformador
Daniela Caniçali
“O professor Antonio Carlos Wolkmer é um dos nomes mais representativos da teoria jurídica crítica latino-americana.” Essa é a primeira frase do capítulo sobre o pesquisador na obra El pensamiento filosófico latinoamericano, del Caribe y “latino” (1300-2000), publicada no México, em 2011. Wolkmer é docente do Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) desde 1991. Aposentou-se em 2015, mas segue como professor colaborador e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD). Ao longo de sua trajetória na UFSC, publicou 18 livros no Brasil, três no exterior e mais de cem artigos científicos. Orientou 72 dissertações de mestrado; 19 teses de doutorado; 11 trabalhos de conclusão de curso e 20 projetos de iniciação científica – além de 69 coorientações e seis supervisões de pós-doutorado.
Em 2010, no aniversário de 50 anos da universidade, Wolkmer recebeu do Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) o prêmio Destaque Pesquisador. Como sempre se dedicou integralmente à carreira acadêmica – nunca atuou, nem teve pretensão de atuar, como advogado, juiz ou promotor –, ele se lembra desse momento com carinho: “Essa homenagem foi minha maior recompensa”. Wolkmer é hoje bolsista de produtividade nível 1A do CNPq — apenas dois outros pesquisadores no Brasil conquistaram esse nível na área de Direito.
Trajetória
Apesar de sua intensa produção e reconhecimento, ser pesquisador e professor universitário não estava em seus planos. Natural de São Leopoldo (RS), Wolkmer teve uma formação “tradicional, religiosa, humanista” – como ele a define. Estudou, quase sempre, em colégios católicos. Em 1973, ingressou no curso de Direito – à época se chamava Ciências Sociais e Jurídicas –, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), mantida pela Associação Antônio Vieira (ASAV), de padres jesuítas.
A escolha do curso não foi motivada pela vontade de se tornar um profissional da área. “Minha intenção era cursar Direito como um trampolim para seguir a carreira diplomática, que era meu grande sonho.” O professor explica que, à época, era fundamental ser bacharel em Direito para seguir a Diplomacia. Também era importante a proficiência em línguas estrangeiras: paralelamente aos estudos jurídicos, Wolkmer frequentava aulas de inglês e francês.
Durante a graduação, de 1973 a 1977, Wolkmer foi monitor da disciplina Direito Público: “Diferente de hoje, o monitor era uma espécie de assistente e ministrava aulas”. Na formatura, Wolkmer foi escolhido para orador da turma, o que, segundo ele, chamou a atenção da direção da faculdade. “Ser monitor, orador e ter recebido a nota máxima no meu trabalho de conclusão contribuiu para que eu fosse convidado a dar aulas.” No início de 1978 Wolkmer ingressou como professor da Unisinos.
Recém-graduado, ficou encarregado de ministrar disciplinas propedêuticas, de formação, que demandavam grande preparação teórica e sólida base cultural. Wolkmer assumiu a incumbência sem grandes dificuldades, uma vez que o sonho de ser diplomata o motivara a se dedicar intensamente aos estudos desde muito jovem: “Eu lia sobre muitas coisas: história, geografia, arqueologia, artes, literatura. Um diplomata deveria ter uma vasta cultura geral e ser poliglota. Como eu conquistaria isso, vindo de um meio humilde? Tinha uma vida metódica, era rato de biblioteca, lia o tempo todo, inclusive nos fins de semana.”
Wolkmer foi professor da Unisinos durante 15 anos. Em seu segundo ano como docente, fez uma especialização em Metodologia do Ensino Superior e começou a gostar do magistério. O ensino não estava em seus planos, mas nesse momento começou a mudar. “Percebi que não era a Diplomacia, mas sim a carreira universitária que me motivava. Estava realmente empolgado pelo ensino e pela pesquisa, numa época em que, na área do Direito, a pesquisa era confundida com estudo de casos e decisões dos tribunais – as denominadas jurisprudências.”
Seu interesse crescente pela pesquisa o estimulou a estabelecer uma nova metodologia de trabalho. “Decidi mudar o caráter da pesquisa: todo trabalho deveria envolver problema, objetivos e método. Os estudantes deveriam escolher uma temática, problematizar, utilizar metodologia e referencial analítico. Isso foi uma verdadeira revolução.” Além de seu envolvimento maior com a vida acadêmica, uma viagem à “Europa clássica”, por 45 dias, também contribuiu para que desistisse da diplomacia: “Todo o romantismo que eu tinha em relação a países que queria muito conhecer, como Itália e Grécia, foi descontruído”. Wolkmer fez então a escolha que seria definitiva: “Decidi que minha carreira seria na universidade: no magistério, na pesquisa e na extensão.”
Em 1979, Wolkmer ingressou no mestrado em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “O primeiro mestrado em Direito do Sul do Brasil foi o da UFSC, criado em 1973. Mas na época não havia uma política de bolsas, e era difícil, para um jovem professor, dedicar-se integralmente ao mestrado.” Segundo o pesquisador, o profissional liberal era, então, muito mais valorizado: ser um bom advogado, juiz ou promotor significava ser bem sucedido. “O docente era visto como alguém que não teve êxito profissional nas áreas mais importantes.” A reputação do professor universitário aos poucos mudou, sobretudo com as novas políticas nacionais na área de Educação. Ter mestrado e doutorado passou a ser valorizado, incentivado e, posteriormente, exigido. “Houve uma mudança grande na política universitária do país. Professores pesquisadores que, antes, eram marginalizados, ganharam destaque.”
O mestrado em Ciência Política possibilitou-lhe o diálogo com outras áreas. “Saí do mundo das leis, códigos, tribunais e tomei consciência da importância das pesquisas que traziam um retorno para a sociedade.” Wolkmer começou a pensar a pesquisa como transformadora da realidade. “Para quem sai da faculdade com aquela visão do Direito fundada na memorização de artigos, a Ciência Política foi um choque para mim. Meus colegas eram cientistas políticos, cientistas sociais, pedagogos, jornalistas. Estar em contato com novas perspectivas me permitiu realizar uma pesquisa não só comprometida com a prática social, mas com uma visão crítica e interdisciplinar da realidade.”
Em 1989, Wolkmer ingressou na segunda turma de doutorado em Direito da UFSC – o primeiro do Sul do Brasil. Foi atraído pelo perfil do programa: “Não era formalista, tradicional, de reprodução. Era um curso crítico, interdisciplinar, que introduzia problematizações”. Enquanto cursava o doutorado, prestou concurso para professor assistente em Direito Público, na UFSC, e ficou em primeiro lugar. “Eu estava em uma instituição privada, onde não havia plano de carreira nem tradição em pesquisa. Ingressar em uma universidade federal, pública, era não só estimulante, desafiador, como significava buscar estabilidade como professor e pesquisador.”
Pesquisa
Em 2007, Wolkmer criou o Núcleo de Estudos e Práticas Emancipatórias (Nepe), que se constituiu em um espaço de leituras, reflexões e produção para os três eixos de pesquisa a que o professor se dedica. O primeiro deles aborda a cultura jurídica na América Latina, pelo qual se ampliou o contato com universidades latino-americanas. “Eu me tornei professor visitante de várias universidades: Universidade de Buenos Aires (UBA); Universidade do Chile (Uchile); Universidade Nacional da Colômbia (Unal); Universidade de Antioquia (UdeA), entre outras.” Ao longo de sua trajetória na UFSC, Wolkmer vem estabelecendo um diálogo permanente para a construção crítica de uma teoria e cultura jurídica latino-americana.
Enrique Dussel, argentino radicado no México e grande pensador da Filosofia da Libertação, é uma de suas principais referências intelectuais.
Seu segundo eixo de estudos está voltado para a discussão da crise do Direito ocidental na modernidade, suas novas possibilidades e alternativas. “Estudo a busca de novos paradigmas. Questiono de que forma se dá a regularização, a normatividade, o controle social. Esses mecanismos são eficazes ou ineficazes? Assumem um caráter repressivo? Discuto o modelo que foi transplantado na colonização espanhola, na América Hispânica, e na colonização portuguesa, no Brasil.” O professor busca alternativas na direção da interdisciplinaridade e da descolonização. Segundo ele, o Direito que foi importado da Europa é formalista e positivista. “Seus agentes tendem a reproduzir uma prática convencional, sem um compromisso com nossa realidade periférica. É importante melhorar nosso sistema de justiça, tornando o acesso mais democrático e popularizado.” Wolkmer critica o conservadorismo, a morosidade e a burocracia de nossa cultura jurídica: “Estudo formas de tornar a justiça mais célere, mais simples e com benefício maior para toda a população”.
A terceira direção de sua pesquisa é o pluralismo jurídico, expressão que identifica e compreende vários sistemas normativos na sociedade: “Esse foi o tema central da minha tese. A versão de legalidade oficial, monista e dominante é a do Direito produzido pelo Estado, através dos poderes Legislativo e Judiciário. Essa é a versão dominante que se estuda durante os cinco anos da graduação. Aprende-se que o Direito está expresso na lei e se efetiva nas instâncias estabelecidas pelo Estado. O pluralismo traz outra visão: o Direito como sistema normativo não existe apenas nos códigos positivos e na lei escrita, formalizada, mas está presente na sociedade de várias outras formas. Grupos sociais também produzem normatividade. Pluralismo é a descentralização, a fragmentação das formas de poder, é ver o Direito não apenas no Estado e nos códigos, mas na sociedade civil, nas lutas sociais”.
Como professor, Wolkmer afirma que seu esforço sempre foi para formar operadores do Direito, teóricos ou práticos, comprometidos com a prática social e com a transformação da sociedade. Referindo-se a si mesmo na terceira pessoa, ele se define como “um acadêmico, um professor com uma vida dedicada ao magistério e à pesquisa, que tem a missão, o objetivo fundamental de despertar a consciência e de formar uma geração de profissionais comprometida com a realidade, com o Brasil, com a América Latina. O ensino deve estar embasado em uma educação descolonial e crítica. Não me refiro a uma crítica niilista, de jogo de palavras. É uma crítica comprometida com as mudanças, no sentido de recriar e possibilitar uma tomada de consciência, uma emancipação”.