Daniela Caniçali
Era 1990, um grupo de cerca de dez pesquisadores se reúne em torno de um interesse em comum: o dramaturgo inglês William Shakespeare. Em 1991, nasce, em Belo Horizonte (MG), o Centro de Estudos Shakespeareanos (CESh). Entre aqueles que participaram da fundação da entidade, estava José Roberto O’Shea, que acabava de se tornar professor do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras (DLLE) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). No CESh, O’Shea foi designado para iniciar os projetos de tradução. “O grupo entendeu que eram necessárias novas traduções. Como os padrões de fala se modificam, mesmo o teatro supostamente clássico, que é o caso de Shakespeare, tende a ficar datado”, explica. Segundo o pesquisador, as traduções que circulavam até o final da década de 1980 estavam desatualizadas em termos de léxico, estruturas frasais e referências culturais. Estavam, portanto, distantes do público leitor e espectador.
Antônio e Cleópatra foi a primeira das oito obras do dramaturgo inglês que O’Shea traduziu desde então. “Decidimos começar pelas menos encenadas e menos conhecidas, mas que são também peças extraordinárias.” Seu trabalho se realiza no âmbito do projeto de pesquisa “Traduções anotadas da dramaturgia shakespeariana”, que tem apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e está em atividade ininterrupta há 23 anos. O’Shea é o único tradutor de Shakespeare no Brasil cuja atividade está vinculada a programas de pós-graduação stricto sensu. O professor também traduziu, além das obras de Shakespeare, obras sobre Shakespeare. De Harold Bloom, reconhecido crítico literário de língua inglesa, traduziu, entre outros títulos, Shakespeare: a invenção do humano, com cerca de 900 páginas.
O’Shea afirma evitar qualquer relação de reverência ou mitificação. “Tento não entrar nessa, senão fico paralisado. Mas, sem sombra de dúvida, como outros grandes autores, Shakespeare tem percepções gravíssimas sobre a natureza humana.” O professor explica que uma das preocupações básicas do autor é explicitar que a viagem do crescimento do ser humano parte de uma situação de relativa cegueira, autoengano, ignorância com relação a si mesmo e à realidade que o cerca, e segue na direção do autoconhecimento, da percepção de sua relativa importância. “Essa é uma sacação muito grande.” Outros temas recorrentes são o amor romântico – “quase sempre morre o amor ou morrem os amantes” – e a política, a exposição do mau governante – “aquele que só visa ao seu bem próprio e ao de alguns que o cercam”.
O tradutor
A formação do tradutor demanda muita leitura e escrita. “Ler e escrever são atividades indissociáveis. É preciso ter bastante conhecimento da língua de partida e imensurável conhecimento da língua de chegada. Aí o céu é o limite.” O’Shea reforça seus argumentos citando o poeta chileno Nicanor Parra: “Para traducir Shakespeare/ y comer pescado/ cuidado: poco se gana con saber inglés”. Conhecer a língua e a cultura de chegada, portanto, é o que permite ao tradutor escrever com fluidez, fazendo o texto “funcionar” em seu contexto.
O professor lembra que “um tradutor é um escritor”, apesar de nem sempre ser assim reconhecido. “Nos últimos 30 anos, o tradutor está se tornando mais conhecido, mais visível, mais respeitado. Mas ainda há um caminho longo a ser trilhado.” O’Shea faz referência às críticas literárias: “Às vezes o crítico diz: ‘O autor tem um belo estilo’. Mas o autor não escreveu uma daquelas palavras sequer. Nenhuma! Todas as palavras que o crítico leu foram escritas pelo tradutor. Ele elogia o estilo, a fluência, a linguagem, e nem menciona o tradutor, como se aquela obra tivesse sido escrita em língua portuguesa. Essa é a famosa invisibilidade do tradutor.”
Trajetória acadêmica
Como estudante, O’Shea nunca frequentou uma universidade brasileira: cursou a graduação, o mestrado e o doutorado em diferentes instituições dos Estados Unidos (EUA). Seus quatro pósdoutorados também foram no exterior: três deles na Inglaterra e um nos EUA. Shakespeare foi o eixo central da pesquisa que desenvolveu na UFSC, de 1990 a 2015. Nesse período, orientou 46 trabalhos, entre estágios de pós-doutorado, teses de doutorado, dissertações de mestrado, monografias e trabalhos de conclusão de curso (TCC) – a maioria abordou diversos aspectos da obra de Shakespeare. O’Shea se aposentou em março de 2015, mas segue como professor colaborador dos programas de pós-graduação em Inglês (PPGI) e em Estudos da Tradução (PPGET). Orienta, atualmente, dois estudantes de mestrado, cinco de doutorado e um de pós-doutorado. “Os 25 anos que passei na UFSC não gostaria de ter passado em nenhuma outra universidade do mundo. Fiz quatro pós-docs, dei aula como convidado em universidades no Brasil e no exterior, sempre tive apoio para fazer pesquisa, apresentar trabalhos em eventos nacionais e internacionais. Não substituiria minha experiência aqui por nenhuma outra.”
A tradução
Shakespeare é frequentemente traduzido em prosa. A tradução em versos metrificados é um dos diferenciais do trabalho de O’Shea. Somam-se a isso a linguagem atualizada e a inclusão de anotações, comentários, paratexto e bibliografia selecionada. Em todas as obras que publicou, há um ensaio introdutório e notas explicativas cobrindo questões de texto, contexto e encenação. Em Antônio e Cleópatra, por exemplo, há 365 notas. Por isso, o resultado final vai além da tradução em si: “Eu gosto de pensar que minhas traduções, volume a volume, são edições críticas daquele texto”.
Seu método de trabalho se inicia com a escolha do texto base. “Para Antônio e Cleópatra, analisei cinco edições integrais da peça, todas anotadas e publicadas nos últimos 50 anos: Oxford; Cambridge; Riverside; Penguin; Arden. São excelentes edições. Mas escolhi a Arden, porque, a meu ver, é a que está mais bem resolvida textualmente.” Segundo o professor, não é comum os tradutores terem o cuidado de confrontar a edição que escolheram com outras cinco ou seis, verso a verso, como ele faz. “Com todo o respeito, muitas traduções carecem de pesquisa. O tradutor elege uma boa edição moderna e se atém às anotações e às soluções textuais dessa única edição.”
Uma das principais diferenças entre a tradução em verso e em prosa é a questão do espaço. “Na prosa, se precisar de dez palavras para descrever um objeto, posso dispor de dez palavras. Na poesia metrificada, não. Trabalho com decassílabos, e, muitas vezes, minha melhor opção semântica tem quatro ou cinco sílabas, mas não posso usá-la. Tenho que me contentar com minha segunda, terceira melhor opção semântica, pois não tenho espaço para escrever, por exemplo, em-be-ve-ci-men-to.” O’Shea explica que pode haver perdas semânticas, mas há ganhos estéticos. “Não posso ser prolixo, não tenho espaço para explicar o texto, tenho que ser parcimonioso. Afinal, trata-se de poesia, e poesia é sugestiva, é elíptica, ela nos permite imaginar.”
Outro desafio na tradução em verso é a rima. “As rimas visuais, graficamente óbvias, são mais fáceis de traduzir. Mas há rimas que não repetem padrões gráficos. Você não vê, você ouve. É preciso esquecer um pouco a questão gráfica e ir para o som, com flexibilidade, pois muitas vezes há várias possibilidades de pronúncia. Home e come, por exemplo, podem rimar, depende da pronúncia do poeta. Eu trabalho com dicionários de rimas, não tenho escrúpulos em dizer isso.” O professor afirma “não ter escrúpulos”, pois há certo preconceito entre tradutores quanto ao seu uso. Ele conta o que lhe ocorreu em um congresso em Liverpool: “Eu falava sobre minhas traduções, sobre poesia rimada, quando um colega de Oxford perguntou como eu trabalhava. Eu disse: ‘Trabalho com um dicionário de rimas. Aliás, com mais de um’. Ele riu, como quem diz, ‘cadê o ouvido de poeta?’ Mas, em um dos meus dicionários, há na capa a citação: ‘(…) a salvação da lavoura poética’, Carlos Drummond de Andrade. “Se Drummond diz isso, acho que estou liberado”, argumenta com humor.
O professor também aponta a importância de identificar as palavras que sofreram inversão semântica. “Os vocábulos que a gente não conhece não são um problema. Existe pelo menos uma dúzia de dicionários que cobrem todo o léxico shakespeariano. O problema são as palavras que parecem corriqueiras, que ainda são utilizadas, mas que sofreram inversão semântica: hoje significam o oposto do que significavam na primeira década do século XVII. São inúmeras dessas palavras! Essas é que são perigosas, podem ser armadilhas para o tradutor. Merely, que hoje é ‘meramente’, antes era ‘totalmente’. Fellow, que significa ‘camarada’, na época significava ‘marginal’, ‘criminoso’. Rival, que hoje significa ‘rival’, na época significava ‘parceiro’. Identificar isso é um desafio, você tem que pesquisar muito.” O’Shea acrescenta que também é importante ter o máximo de empatia possível com cada personagem. “Você não pode tomar partido, tem que tentar fazer o melhor possível a partir do personagem que está falando naquele momento. É o que alguns autores chamam de ‘defender o personagem’. O tradutor também deve defender o personagem.”
Tradução
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Editora
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Ano
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Antônio e Cleópatra |
Mandarim/Siciliano |
1997 |
Cimbeline, rei da Britânia |
Iluminuras |
2002 |
O conto do inverno |
Iluminuras |
2007 |
Péricles, príncipe de Tiro |
Iluminuras |
2012 |
O primeiro Hamlet: In-Quarto de 1603 |
Hedra |
2013 |
Os dois primos nobres |
Iluminuras |
2016 |
Tróilo e Créssida |
Editora 34 |
2016 |
Timon de Atenas |
(em progresso) |
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