Na contramão
O Brasil ainda utiliza o agrotóxico Sulfluramida
Rosiani Bion
A Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs), em vigor desde 2004, realizou a nona Conferência das Partes de 29 de abril a 10 de maio de 2019, em Genebra (Suíça). Como um dos signatários, o Brasil tem se comprometido a adotar medidas para a proteção da saúde humana e do meio ambiente, estabelecidas por países das Nações Unidas, da América Latina e do Caribe. Mas, em alguns casos, o governo brasileiro segue na contramão e ainda não restringiu o uso industrial e tem dificuldades na fiscalização do agrotóxico Sulfluramida.
Os riscos da utilização desse tipo de pesticida se encontram nos compostos químicos gerados pela sua rápida degradação, entre eles o PFOS (Ácido Perfluoroctanoico Sulfônico), um poluente extremamente resistente e bioacumulável. O PFOS não é mais fabricado ou utilizado na maioria dos países signatários da Convenção, já que suas características contribuem para a contaminação da água, do solo, e, inevitavelmente, intoxicam fauna e flora. No que tange à saúde pública, esse composto químico está relacionado a transtornos neurológicos e hepáticos, além de problemas de desenvolvimento em recém-nascidos, baixa imunidade, colesterol elevado, disfunção da tireoide, obesidade, infertilidade masculina, entre outros. Estudos também apontam a possibilidade de a substância ser cancerígena.
A justificativa apresentada por órgãos do governo brasileiro é não ter produto equivalente e, por isso, reitera os pedidos de isenção para continuar utilizando, produzindo e, até mesmo, exportando a Sulfluramida. Em vez de reduzir, a fabricação cresce em larga escala. Além de violar as disposições da Convenção de Estocolmo, o cenário atual preocupa quem estuda o assunto no país e no exterior. Entre os pesquisadores, a professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e oceanógrafa Juliana Leonel dedica-se aos estudos da poluição marinha, com ênfase nos Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs).
Economia perversa
Em seu artigo, intitulado “A Formiga e o Mar” e publicado em 2018, Juliana explica que as análises ambientais e experimentações realizadas em conjunto com o Laboratório de Oceanografia Química da UFSC, em parceria com instituições nacionais e internacionais, demonstraram que o uso do formicida Sulfluramida nos cultivos de pinus e eucalipto é uma importante fonte de PFOS para o ecossistema. Além disso, os resultados das análises evidenciaram que o composto está sendo transportado do local de aplicação até a região costeira do Brasil.
O problema toma proporções ainda maiores ao identificar que o Brasil é um dos grandes produtores de pinus e eucalipto no mundo. A matéria-prima abastece principalmente as indústrias para produção de papel e celulose, lenha e carvão vegetal. Suas plantações ocupam 6,5 milhões de hectares de norte a sul do país, com destaque para os estados de São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul e Bahia.
Juliana, que também lecionou e iniciou sua pesquisa acadêmica na Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 2014, cita o exemplo de cidades no extremo sul do estado baiano, onde quase 50% da área é voltada a esse tipo de cultivo. O interesse econômico também pode ser percebido no aumento, nos últimos anos, da produção de eucalipto no Brasil. O que a torna tão atrativa a empresas do setor são os incentivos fiscais, a flexibilização da legislação ambiental, associados a favoráveis condições climáticas e de adaptação do solo. O tempo de produção também é outro fator positivo. A espécie é originária da Austrália, onde demora quase 30 anos para estar preparada para o corte; já no Brasil, leva em torno de sete.
No decorrer do tempo de cultivo, a Sulfluramida é aplicada na forma de iscas granuladas, para o controle das formigas cortadeiras. Em poucos dias, o defensivo se transforma no PFOS, que será arrastado com a água das chuvas, infiltrando-se no solo, em lençóis freáticos e mananciais.
Até pouco tempo acreditava-se que as razões para este tipo de contaminação estavam relacionadas a áreas urbanas e industriais do país. Após as comprovações das pesquisas, evidenciam-se os efeitos da aplicação do formicida na poluição de rios e oceanos.
Áreas distantes atingidas
A professora destaca que a Sulfluramida nem sequer consta entre os dez pesticidas mais usados no Brasil. E, para entender como se relaciona o perfil do consumo no país com as altas concentrações do PFOS, começou a desenvolver um projeto-piloto na Baía de Todos os Santos, no litoral do estado da Bahia. Para surpresa dos pesquisadores, em regiões afastadas das áreas urbanas e industriais, com produções de eucalipto e drenagem de rios, a contaminação por PFOS remetia ao perfil da Sulfluramida.
Em um experimento com cenouras, foram feitas produções controladas e aplicações de iscas formicidas na forma pura e no solo. O vegetal foi escolhido por ser uma espécie que cresce rápido e também por ser muito usado na alimentação humana. Por 80 dias, periodicamente, foram feitas coletas e foi verificado que o prazo para a degradação da Sulfluramida em PFOS era de apenas duas semanas. O composto tanto era acumulado no solo, como era absorvido pelas folhas e raízes do vegetal.
“A preocupação com o PFOS tomou força no princípio da década de 1990. Estudos da época ligavam o composto a efeitos tóxicos e, a partir daí, começou-se um trabalho de investigação e de monitoramento, de forma a entender o contexto e, ao mesmo tempo, diminuir os níveis de produção dele mesmo”, contextualiza a docente.
O PFOS, argumenta, “faz parte dos compostos perfluorados — que possuem flúor na sua composição — o que permite que seja aproveitado em uma ampla gama de produtos de uso doméstico e industrial”, como, por exemplo, espuma de combate a incêndios, embalagens de alimentos, fitas adesivas, aditivos, produtos de higiene pessoal, maquiagem, impermeabilizantes, protetores antimanchas, praguicidas, estofamentos e carpete.
Em 2009, os países signatários da Convenção de Estocolmo acrescentaram o composto para a sua restrição global, mas alguns usos foram isentos e tiveram autorização para continuar, como o caso do Brasil. Na visão da pesquisadora, é perceptível a falta de interesse em substituir a Sulfluramida no país, por ser um produto extremamente barato comparado a outros praguicidas, e por não ter, até o momento, avanço dos estudos neste sentido.
Para Juliana Leonel, o próximo passo será expandir as amostragens e traçar o perfil de contaminação pelos compostos perfluorados nas diferentes bacias hidrográficas do Brasil. Estes são os objetivos do projeto “Origem, Distribuição e Transporte de PFOS para o Atlântico Sul”, que teve aprovação e auxílio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A professora inicia mais uma etapa de seus estudos e espera que sirva de base para a implantação de políticas públicas, que o Brasil não seja mais uma exceção no mundo e que invista e coloque em prática a melhoria da saúde da população e do meio ambiente.