Livros que curam

18/12/2017 09:18

A Biblioterapia, campo de pesquisa e extensão na UFSC, promove o potencial terapêutico da leitura e contação de histórias

Bruna Bertoldi Gonçalves

Para o escritor Marcel Proust, a leitura é um milagre que acontece na solidão. Para o filósofo Jean-Paul Sartre, há, no ato de ler, um pacto de generosidade entre autor e leitor. E cuidar do corpo e da mente por meio da leitura, contação ou dramatização de histórias é a proposta da Biblioterapia, prática cujos primeiros estudos no Brasil datam da década de 1970. A atividade pode ser desenvolvida com pessoas de todas as idades e nos mais variados ambientes, de forma individual ou em grupo. O que muda é o texto escolhido, a modalidade de aplicação e o diálogo estabelecido após a história.

“Biblioterapia é a terapia por meio dos livros. Há diferentes acepções para as palavras livro e terapia. Mas, nesse caso, livro seria um texto literário com potencial de ‘tratar’ os seres humanos”, afirma a professora do Departamento de Ciência da Informação do Centro de Ciências da Educação (CIN/CED/UFSC), Clarice Fortkamp Caldin.

Por ser uma prática barata e prazerosa, a Biblioterapia pode, na avaliação da professora, suscitar emoções, causar alívio, produzir o riso, gerar a identificação, projeção, introjeção e introspecção — o leitor pode projetar nos personagens os sentimentos incômodos que o assolam, introjetar qualidades que admira e desenvolver a capacidade de perceber o que se passa em seu interior.

“Existem mil e uma definições sobre a leitura e teorias sobre sua importância na vida pessoal, escolar, acadêmica e profissional. Mas, no processo terapêutico, a leitura alivia o coração e age como um bálsamo. Pelos livros — o que também se aplica à contação ou dramatização de histórias —, estimula-se a imaginação e provoca-se emoções”, afirma a estudiosa.

A história é selecionada de acordo com as características e faixa etária do público, para que os componentes biblioterapêuticos (catarse, identificação e introspecção) atuem de forma eficaz. “A catarse é visível. É possível perceber quando um texto literário tira a pessoa da apatia, do desânimo, proporcionando um alívio temporário de suas aflições,” afirma Clarice.

A catarse é uma forte reação emocional, seguida por uma sensação de bem-estar, com diminuição da tensão interna. “O termo ‘catarse’ foi utilizado por Aristóteles para descrever a experiência emocional da audiência de uma peça trágica. Originalmente, o termo grego significava ‘purgação’ e, no meio médico, era utilizado para descrever medicamentos de efeito laxativo. Por analogia, a reação a uma tragédia seria a experiência de uma descarga emocional: o grande sofrimento do protagonista é seguido por uma sensação de alívio”, esclarece o psicólogo do Serviço de Atenção Psicológica (Sapsi/ UFSC), Erikson Kaszubowski.

Carla Sousa da Silva, que foi orientanda de Clarice no mestrado em Ciência da Informação da UFSC, escolheu como objeto de estudo a biblioterapia: “Apesar de ser um tema desconhecido, a maioria de nós já vivenciou o poder terapêutico de histórias. Em algum momento das nossas vidas, um conto, poesia ou romance já serviu como alívio para nosso corpo e alma. Isso é biblioterapia.”

Carla realizou quatro sessões terapêuticas com alunos do curso de Biblioteconomia da universidade em junho de 2016, durante seu estágio de docência. Os encontros ocorreram na biblioteca do Centro de Educação (CED), com duração de 30 minutos. “A sessão iniciava com uma atividade de relaxamento. Depois, eu lia uma história curta, conto ou poesia, e em seguida conversávamos. O momento do diálogo, na prática da biblioterapia, é muito importante”, explica.

Conduzir a leitura, contação e dramatização dos textos de maneira agradável, fortalecer a relação de amizade que a atividade desperta nos grupos, mostrar-se acessível e ter uma postura de cumplicidade com o texto e o público são algumas atribuições dos aplicadores da biblioterapia. Tranquilidade e equilíbrio estão entre os benefícios apontados por quem vivenciou a prática. “Para os alunos, a experiência trouxe leveza. Essa sensação agradável ocorre pois, por alguns instantes, as pessoas esquecem o mundo lá fora e se voltam para a história e para os personagens, que os conduzem para seu mundo interior”, relata Carla.

“Depois dos encontros, a pessoa se sentia mais preparada para enfrentar os desafios da vida. É bonito ver o poder das histórias atuando nas pessoas”, afirma. Além de desenvolver trabalho voluntário em um abrigo de crianças em Florianópolis, onde conta histórias, Carla promove práticas de yoga associada à biblioterapia. “Também uso a biblioterapia como minha terapia particular. As histórias sempre me ajudam a me olhar e a ver o mundo ao redor com outros olhos.” Em sua dissertação de mestrado, Carla analisa a prática no Brasil e na Polônia: “A Polônia é um dos lugares onde há muita produção bibliográfica sobre o assunto e práticas bem interessantes.”

A terapia

“A pessoa seleciona um livro que pode ajudá-la a resolver problemas de ordem pessoal. A escolha é em função do que gosta de ler: romance, poesia, contos, crônicas, textos religiosos, biografias. Essa pessoa se sente aliviada após a leitura — pode se identificar com a personagem, refletir sobre os acontecimentos de sua vida, verificar semelhanças e possibilidades de resolver seus problemas”, explica a professora Clarice. Para a pesquisadora, a ficção, com sua linguagem metafórica e universalidade, possui a capacidade de mexer com as pessoas. “Busca-se, na literatura, textos contemporâneos, que abordem o cotidiano; e textos clássicos, que apresentem metáforas dos problemas humanos.”

Clarice defendeu, em 2001, sua dissertação de mestrado no programa de pós-graduação em Literatura da UFSC, com o título “A poética da voz e da letra na literatura infantil (leitura de alguns projetos de contar e ler para crianças)”. No ano seguinte, elaborou e executou um projeto de biblioterapia em uma escola estadual de educação básica. “Para aliar a pesquisa com o ensino e a extensão, propus a disciplina Biblioterapia em 2002, que foi oferecida aos estudantes de Biblioteconomia. A prática de extensão ocorreu na ala infantil do Hospital Universitário.”

Diante da ampla aceitação, a disciplina é ofertada como optativa no curso de Biblioteconomia desde 2003. “Depois de apreenderem teoricamente o sentido do cuidado por meio da leitura, os alunos desenvolvem atividades biblioterapêuticas em instituições selecionadas”, explica a professora. Em 2009, Clarice defendeu sua tese de doutorado, que foi publicada em livro com o título “Biblioterapia: um cuidado com o ser”.

As aulas práticas da disciplina já foram realizadas em hospitais, asilos, casas de repouso, creches, escolas, centros comunitários, condomínios e até na ala feminina de um presídio. Carla observa que o potencial terapêutico das histórias está disponível para quem quiser fazer uso dela, seja individualmente ou em grupo: “Todo mundo que gosta de ler guarda na memória alguma leitura que foi importante em determinado momento de sua vida.”

Para Clarice, “a leitura tem a vantagem de poder ser armazenada e digerida posteriormente. Dessa forma, um texto pode ‘amadurecer’ na mente e no coração até a pessoa verificar a possibilidade de modificar determinados comportamentos que atrapalham sua vida diária”.

Biblioterapia no mundo

Registros históricos apontam que Caroline Shrodes, na década de 1940, foi a primeira pessoa a ter o título de doutorado em Biblioterapia, construindo as bases da terapia por meio de livros, como é conhecida hoje. A tese “Bibliotherapy: a theoretical and clinical-experimental study” explorou a teoria e prática da biblioterapia com jovens e adultos universitários, apresentando o uso da literatura ficcional com finalidade terapêutica. De acordo com Clarice, há registros ainda mais antigos. No Egito, Grécia e Roma antigos, a biblioteca era um espaço sagrado e os textos tinham propriedades medicinais.

“Depois da Primeira Guerra, a leitura foi usada nos hospitais como forma de terapia para os veteranos de guerra. Durante algum tempo, os livros também eram indicados como remédio para doentes mentais. Aos poucos a biblioterapia passou a ser vista como benéfica para todos, pois a ideia de saúde mudou e hoje é entendida como um estado de equilíbrio. Quando pai, mãe ou avó liam histórias para nós antes de dormirmos, estavam realizando, sem saber, a terapia por meio de livros”, finaliza Clarice.