Eles estão entre nós

18/12/2017 09:22
Artemio Reinaldo de Souza

Eles estavam aqui muito antes de nós. Há 200 ou 300 milhões. Quando nós proliferamos, e tomamos conta das terras, começaram a sugar nosso sangue e a transmitir vários agentes patogênicos como vírus, bactérias protozoários, vermes, causando danos para o ser humano. Mudanças ambientais e climáticas, mobilidade das pessoas e animais domésticos resultaram em situações inesperadas como a zika, a chikungunya e a doença do sono.

Eles são os artrópodes, animais invertebrados que possuem exoesqueleto rígido e vários pares de apêndices articulados, cujo nome varia de acordo com a classe. É um grupo numeroso e diversificado, formado, entre outros, por insetos e carrapatos, que convivem de perto conosco e são responsáveis por doenças como malária, leishmaniose e Doença de Chagas, sem falar nas mais midiáticas como chikungunya, febre amarela e dengue, transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti.

São os personagens principais de um livro organizado pelo professor Carlos Brisola Marcondes, intitulado Arthropod Borne Diseases (Doenças transmitidas por artrópodes), publicado pela Editora Springer agora em 2017 e com 645 páginas que têm um objetivo essencial: compreender para prevenir. Foram convidados para escrever artigos os principais especialistas de diversos países como Estados Unidos, França, Inglaterra, Camarões, Argentina, do próprio Brasil, além de membros da Organização Pan americana de Saúde.

Do alto de sua graduação em Ciência Biomédica pela Escola Paulista de Medicina em 1973, mestrado em Parasitologia em 1978 na Universidade Federal de Minas Gerais e doutorado em Entomologia no ano de 1997 na Universidade Federal do Paraná, o professor Brisola, nascido em São Paulo, é assertivo quando diz que é preciso compreender como vivem os insetos, entrar nas florestas, estudar o habitat em que vivem. “Não se pode esperar que morram macacos para se tomar providências e então vacinar a população.”

“Deixar para depois”

Cada capítulo fala de uma ou duas doenças, o ciclo, o transmissor, o modo como transmite, o diagnóstico da doença, o tratamento etc. Quem é o parasito, como ele é transmitido, como pode ser tratado, quais os sintomas da doença, o diagnóstico, o tratamento, cobrir todos os aspectos relacionados. Como Brisola diz logo no começo, o objetivo é o de prevenir, evitar sofrimento e mortes. “A morte de um homem é uma tragédia; a de milhões é uma estatística.”

A obra fornece aos profissionais em saúde e ao público em geral informações para resolver problemas relacionados às doenças transmissíveis. Segundo Brisola, o crescente conhecimento de mecanismos patogênicos, diagnóstico, tratamento e profilaxia não são bem divulgados e muitos serviços de saúde pública permanecem mal informados, acreditando que essas doenças não ocorrem no dia-a-dia.

Mas essas são doenças que ocorrem em um monte de países. Existem vírus transmitidos por mosquitos no Canadá, nos Estados Unidos, que são países desenvolvidos e frios. “Não é porque é desenvolvido que não tenha as doenças”, ressalva o professor Brisola.

Ele cita o caso de cachorros pegando leishmaniose visceral na Finlândia. O animal contraiu a doença através de um mosquito na Espanha, retornou e contaminou outros cachorros. “Isso que é uma surpresa. Surpresa não é a leishmaniose visceral em Porto Alegre. Isso é falta de cuidado das autoridades de saúde.”

Brisola se refere à grande quantidade de cães positivos com leishmaniose visceral no Rio Grande do Sul, onde uma menina passou quatro meses com a doença e morreu. A leishmaniose visceral é uma doença de difícil identificação. Os sintomas incluem febre prolongada, emagrecimento e redução de glóbulos brancos.

“Não havia um caso humano em Porto Alegre. Ora, se o médico ler, estudar, pesquisar porque que a febre não cede, observar o número de cachorros positivos, colher material da medula óssea e fazer um exame sorológico pode diagnosticar com precisão. Uma criança morreu quando não podia ter morrido. É um absurdo isso. A pessoa precisa estudar, ter acesso à literatura. Então, esse livro facilita a compreensão sobre essas doenças para prevenir, para evitar mortes”, reafirma Carlos Brisola.

Aqui, em Santa Catarina, Brisola ressalta que havia pesquisadores muito bons que nas décadas de 70 e 80 estudavam o barbeiro, responsável pela Doença de Chagas, e tiveram que ir para outras áreas, como biologia molecular, por falta de dinheiro. “De repente surge um surto da doença no caldo de cana. Pegou todo mundo desprevenido. Mas se eles tivessem tido condições de subir na palmeira, procurar o barbeiro e ver que lá é perigoso, o surto não teria ocorrido. Ou seja, é fundamental dar condições para se desenvolver pesquisa, pessoas estudarem, prestarem atenção. Essa é a lacuna que o livro tenta preencher.”

E por que não se faz isso? “Porque impera a cultura do sempre deixar para depois. Agora não dá, não tem isso ou aquilo. Se falar com o pessoal da saúde pública, eles vão dizer que a bola da vez é o Aedes e que não há tempo para mais nada. Ordens superiores de Brasília para só mexer com dengue”, lamenta.

Enquanto isso as outras doenças vão proliferando. “Tem que evitar um incêndio antes que ele comece. Não adianta correr para formar Bombeiros e pedir socorro depois que o fogo tiver começado”, avisa Carlos Brisola Marcondes, aposentado há um ano e meio, mas ainda voluntário no Departamento de Microparasitologia da UFSC.

Arthropod Borne Diseases está disponível no site da Editora Springer em formato de e-book. Pode-se comprar os capítulos separadamente por cerca de vinte dólares cada ou o livro inteiro por cerca de duzentos euros.

Nós, enigmas e mistérios: o sempre contemporâneo Salim Miguel

11/12/2015 09:16
Luciana Rassier*

Nós, leitores de Salim Miguel, somos, incontestavelmente, privilegiados. O Mestre deleita-se em nos surpreender, e desta vez nos propõe uma novela policial que intriga e seduz. Um bilhete anônimo seguido de um telefonema lacônico. Um cidadão pacato oculta um assassino implacável. Um crime deixa a polícia e a mídia perplexas. Ninguém sabe. Ninguém viu. Mas, ao percorrermos as páginas, vamos encontrando indícios esparsos: seis degraus, o detalhe de uma blusa, o salto de um sapato.

Com os gestos apurados de um artesão, Salim Miguel tece os fios de sua narrativa e faz o Acaso entremear destinos. Oriundos de diversos lugares do país, os personagens acabam em Brasília, envolvidos no crime: um milionário paraense, um rapaz catarinense, uma moça goiana, um alagoano candidato a vereador, um comissário de polícia paulista. A situação é confusa, o caso é intricado. A vítima é-e-não-é quem se pensa. Como desfazer tantos nós?

A homenagem de Salim Miguel aos grandes mestres do gênero policial não está apenas na arquitetura da trama e nos recursos narrativos, mas também no auxílio solicitado a investigadores de primeira linha, como Sam Spade, Nero Wolfe, Philip Marlowe, Ellery Queen, o Padre Brown e o Inspetor Maigret. É a eles que recorre Auguste Dupin, parceiro do personagem-narrador para, entre cálices de bourbon e goles de cachaça, desvendar o mistério e interrogar os suspeitos.

Na obra de mais de trinta títulos que Salim Miguel vem construindo desde sua estreia na literatura em 1951, podemos aproximar Nós de As várias faces (1994) e As confissões prematuras (1998) – novelas que, a partir do roubo de um quadro e de um sequestro, colocam em cena interrogatórios e embates de personagens. Além dessas afinidades temáticas e estruturais mais específicas, Nós traz marcas recorrentes na escrita de Salim, como a alusão a suas leituras prediletas ou ainda a figura de um narrador-personagem-Autor impotente face à página quase branca e a personagens que teimam em tomar as rédeas do próprio destino. Outras marcas são o arrojo na forma; a habilidade na fragmentação e em sua articulação; as vozes plurais que multiplicam os pontos de vista para compor um texto que transforma o leitor em co-autor.

É essa instigante narrativa inédita que a Editora da Universidade Federal de Santa Catarina publicou em 2015, em homenagem aos 91 anos de Salim Miguel, que a dirigiu de 1983 a 1991, dotando-a de estrutura profissional, do prédio que ocupa até hoje e a tornando um dos principais agentes da criação da Associação Brasileira de Editoras Universitárias.

Nas conferências que tenho feito no âmbito de meu pós-doutorado na França, Nós cativa o público, tanto pela bela edição da EdUFSC quanto pela agilidade e contemporaneidade da prosa de Salim Miguel. Afinal, Nós lembra que somos todos eternos migrantes, deslocando-nos entrenossas lembranças, inquietudes e desejos, tentando desvendar nossa própria  identidade e nossos próprios enigmas. Após os recentes atentados em Paris, e face a todas as questões suscitadas pela vaga migratória na Europa, essa narrativa toca ainda mais fundo, porque mostra que o convívio com o Outro pode nos ensinar a compreender nossas próprias estranhezas e incertezas. Quando comecei a tradução da narrativa para a língua francesa, me interroguei sobre como manter a pluralidade de sentidos do título: nós (eu, tu, ele, ela, nós); nós do enredo a ser contado; nós do mistério a ser desvendado. Talvez baste fazer como o mestre Salim, e escolher a palavra, curta e forte, que concentra o belo enigma da existência e do “com-viver”: Nós (Nous).


* Luciana Rassier é Doutora em literatura pela Universidade de Montpellier, França. É docente pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução e no Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da UFSC e tradutora. Com Jean- José Mesguen traduziu para o francês, entre outros, Primeiro de Abril, narrativas da cadeia, de Salim Miguel (Editora L’Harmattan 2007)