Nós, enigmas e mistérios: o sempre contemporâneo Salim Miguel

11/12/2015 09:16
Luciana Rassier*

Nós, leitores de Salim Miguel, somos, incontestavelmente, privilegiados. O Mestre deleita-se em nos surpreender, e desta vez nos propõe uma novela policial que intriga e seduz. Um bilhete anônimo seguido de um telefonema lacônico. Um cidadão pacato oculta um assassino implacável. Um crime deixa a polícia e a mídia perplexas. Ninguém sabe. Ninguém viu. Mas, ao percorrermos as páginas, vamos encontrando indícios esparsos: seis degraus, o detalhe de uma blusa, o salto de um sapato.

Com os gestos apurados de um artesão, Salim Miguel tece os fios de sua narrativa e faz o Acaso entremear destinos. Oriundos de diversos lugares do país, os personagens acabam em Brasília, envolvidos no crime: um milionário paraense, um rapaz catarinense, uma moça goiana, um alagoano candidato a vereador, um comissário de polícia paulista. A situação é confusa, o caso é intricado. A vítima é-e-não-é quem se pensa. Como desfazer tantos nós?

A homenagem de Salim Miguel aos grandes mestres do gênero policial não está apenas na arquitetura da trama e nos recursos narrativos, mas também no auxílio solicitado a investigadores de primeira linha, como Sam Spade, Nero Wolfe, Philip Marlowe, Ellery Queen, o Padre Brown e o Inspetor Maigret. É a eles que recorre Auguste Dupin, parceiro do personagem-narrador para, entre cálices de bourbon e goles de cachaça, desvendar o mistério e interrogar os suspeitos.

Na obra de mais de trinta títulos que Salim Miguel vem construindo desde sua estreia na literatura em 1951, podemos aproximar Nós de As várias faces (1994) e As confissões prematuras (1998) – novelas que, a partir do roubo de um quadro e de um sequestro, colocam em cena interrogatórios e embates de personagens. Além dessas afinidades temáticas e estruturais mais específicas, Nós traz marcas recorrentes na escrita de Salim, como a alusão a suas leituras prediletas ou ainda a figura de um narrador-personagem-Autor impotente face à página quase branca e a personagens que teimam em tomar as rédeas do próprio destino. Outras marcas são o arrojo na forma; a habilidade na fragmentação e em sua articulação; as vozes plurais que multiplicam os pontos de vista para compor um texto que transforma o leitor em co-autor.

É essa instigante narrativa inédita que a Editora da Universidade Federal de Santa Catarina publicou em 2015, em homenagem aos 91 anos de Salim Miguel, que a dirigiu de 1983 a 1991, dotando-a de estrutura profissional, do prédio que ocupa até hoje e a tornando um dos principais agentes da criação da Associação Brasileira de Editoras Universitárias.

Nas conferências que tenho feito no âmbito de meu pós-doutorado na França, Nós cativa o público, tanto pela bela edição da EdUFSC quanto pela agilidade e contemporaneidade da prosa de Salim Miguel. Afinal, Nós lembra que somos todos eternos migrantes, deslocando-nos entrenossas lembranças, inquietudes e desejos, tentando desvendar nossa própria  identidade e nossos próprios enigmas. Após os recentes atentados em Paris, e face a todas as questões suscitadas pela vaga migratória na Europa, essa narrativa toca ainda mais fundo, porque mostra que o convívio com o Outro pode nos ensinar a compreender nossas próprias estranhezas e incertezas. Quando comecei a tradução da narrativa para a língua francesa, me interroguei sobre como manter a pluralidade de sentidos do título: nós (eu, tu, ele, ela, nós); nós do enredo a ser contado; nós do mistério a ser desvendado. Talvez baste fazer como o mestre Salim, e escolher a palavra, curta e forte, que concentra o belo enigma da existência e do “com-viver”: Nós (Nous).


* Luciana Rassier é Doutora em literatura pela Universidade de Montpellier, França. É docente pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução e no Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da UFSC e tradutora. Com Jean- José Mesguen traduziu para o francês, entre outros, Primeiro de Abril, narrativas da cadeia, de Salim Miguel (Editora L’Harmattan 2007)